Por Raymundo Costa – Valor Econômico
BRASÍLIA - Há 52 anos no Brasil, dos quais 43 vividos em Brasília, o professor emérito da Universidade de Brasília, David Fleischer, acompanhou todas as principais crises políticas do país da última metade do século passado. Como cientista político e de observador bem situado na cena brasiliense, com trânsito nas diversas correntes partidárias e do governo, Fleischer carrega uma rica bagagem que lhe dá uma condição única para analisar a primeira grandes crise política deste século, que levou uma presidente popular - como era de Dilma Rousseff no início do primeiro mandato - a se perder na reeleição, bater recorde de reprovação popular e chegar ao fim do primeiro ano do segundo mandado ameaçada de impeachment.
A avaliação de Fleischer é crua: a situação da presidente Dilma ficou extremamente complicada porque ela "tem zero de governabilidade". E nada indica que essa situação vá melhorar a curto ou médio prazos. Ao contrário do que querem fazer crer o PT e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Fleischer não tem dúvidas de que a reforma ministerial realizada no início do mês deu errado, pois ampliou as divisões no PMDB e na base aliada do governo. " Ela não consegue aprovar nada, então está num beco sem saída. A não ser que consiga refazer sua base parlamentar", diz.
A situação pode chegar a um ponto tal de o PT - na opinião de Fleischer - vir a pedir a renúncia da presidente, numa última tentativa para salvar o partidos nas eleições de 2016 e - por tabela - na sucessão presidencial de 2018. Algo como aconteceu com o presidente Richard Nixon, em 1974, no escândalo Watergate, que cedeu aos pelos do Partido Republicano dos EUA em troca do perdão concedido pelo presidente que o sucedeu no cargo, Gerald Ford.
Fleischer foi testemunha do golpe de 1964 e da maioria das crises subsequentes na condição de cidadão norte-americano vivendo no Brasil. Mas já há algum tempo ele se naturalizou brasileiro. É como cidadão brasileiro, como faz questão de lembrar sempre, que concedeu esta entrevista ao Valor, na tarde da última quinta-feira. Fleischer acha que Dilma é vítima dos próprios erros que cometeu, sobretudo ao longo do primeiro mandato. "Como diz o ex-ministro Delfim Neto, ela é muito trapalhona". Mas Fleischer acha que Dilma também é vítima de um sistema político que se esgotou, haja vista como a representação está pulverizada em mais de 20 partidos no Congresso.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: A presidente Dilma Rousseff faz a ceia de Natal no Palácio da Alvorada?
David Fleischer: Faz lá em Porto Alegre, porque ela vai passar o Natal com a família. O risco de ela sair antes do Natal é pequeno, a não ser que as coisas piorem muito e ela seja forçada a renunciar pelo PT?
Valor: Por quê?
Fleischer: O PT está muito preocupado porque eles sabem que perderão feio as eleições municipais, no ano que vem, e por tabela vão perder mais feio ainda em 2018. Então podem até tentar convencê-la a renunciar pelo bem do partido.
Valor: Mas a reforma ministerial e as recentes liminares do STF não deram fôlego para a presidente?
Fleischer: No Supremo são apenas filigranas jurídicas muito limitadas. Impeachment não é Código Penal, são delitos de natureza política, os chamados crimes de responsabilidade política, o que não envolve direito penal, como aconteceu com o ex-presidente Fernando Collor (1990-1992). Impeachment, em qualquer sistema presidencial, é uma decisão política.
Valor: Mas as liminares e a reforma deram ou não um alívio para a presidente?
Fleischer: Deu um folegozinho de alguns dias ou no máximo duas semanas, porque o problema continua: a ameaça dela sofrer a instalação de uma comissão de impeachment. Você tem o problema do Eduardo Cunha, presidente da Câmara, com o dilema de Hamlet na peça de Shakespeare...
Valor: O de ser ou não ser?
Fleischer: Cunha sabe que segurando o impeachment mais um pouco, isso vai evitar que ele seja cassado ou que se instale o processo de cassação de seu mandato. Mas se ele já aceita um pedido de impeachment, talvez esse novo pedido de Hélio Bicudo, na semana que vem, isso vai apressar sua cassação, porque a oposição - PSDB, DEM, etc - só está esperando o impeachment. Eles não participam da pressão pela cassação do mandato dele.
Valor: Por quê?
Fleischer: Porque sabem que, sem o deputado Eduardo Cunha, não conseguem instalar o impeachment. Então isso depende da visão de Cunha de como fazer. Uma vez instalada na Comissão de Ética o processo de cassação dele, Cunha não pode renunciar e se salvar de ser cassado e perder os direitos políticos por dez anos. Por outro lado, o processo dele no Supremo Tribunal Federal pode durar um ano, dois anos, isso não se sabe. Mas a cassação dele pela Câmara dos Deputados seria mais rápida. Eu não sei se ele teria votos para resistir a uma cassação no plenário da Câmara. Hoje a votação é nominal e a descoberto. Talvez ele tenha força suficiente, isso ele mesmo vai ter que avaliar. Se ele renunciar, tentando salvar o próprio pescoço, o Supremo pode levar um, dois ou três anos até decidir o caso dele. E tem outros deputados e senadores também que o procurador-geral colocou lá no Supremo.
• "O que preocupa o PT é a instalação da comissão da Câmara para apreciar o impeachment, como foi com o Collor em 1992"
Valor: Depende só de Eduardo Cunha desencadear o processo?
Fleischer: Apesar dessas últimas liminares do Supremo, o tribunal não tocou e preservou o seu poder exclusivo de instalar o procedimento de impeachment. Isso existe dentro da Constituição. O vice presidente Michel Temer ainda lembrou o precedente: em 1999, quando coincidentemente ele era presidente da Câmara, entrou um pedido de impeachment do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Temer indeferiu. O plenário tomou isso e tentou reverter e anular a decisão do Temer. Foi para votação e perdeu. Então Temer manteve o indeferimento desse pedido de impeachment de Fernando Henrique Cardoso. Cunha lembrou esse precedente, só que no Brasil nosso sistema de direito não visa o precedente, igual na Inglaterra e nos Estados Unidos, nosso jogo jurídico legal é diferente, o precedente não vale nada.
Valor: O que pode agravar a situação da presidente?
Fleischer: O que preocupa muito o PT é a instalação dessa comissão da Câmara para apreciar o impeachment, como aconteceu com Fernando Collor em 1992. Nessa época, o então senador Fernando Henrique Cardoso falou 'isso vai dar em nada, vai acabar em pizza'. Quando essa comissão começou a trabalhar, recebeu inúmeros testemunhos, depoimentos, depósitos bancários e outros documentos e a coisa engrossou muito. Dilma e companhia têm medo é que a mesma coisa aconteça: instalada a comissão, o processo será engrossado com provas, depoimentos, evidências, inclusive coisas da Lava-Jato, porque a Lava-Jato continua e provavelmente muito mais coisas devem sair dessa investigação. Eles têm muito medo que o caldo engrosse demais e a coisa piore muito para Dilma. Se piorar muito, na sua hipótese do peru de Natal, em novembro, início de dezembro, se essa comissão for instalada no início de novembro e o caldo engrosse até lá, pode ser que ela renuncie antes de ser suspenso o mandato dela. Isso é uma possibilidade. Em 1974, o Partido Republicano ficou tão preocupado com o envolvimento do presidente Richard Nixon em Watergate que seus líderes foram até ele e falaram 'pelo bem do Partido Republicano você tem que renunciar, se não nós vamos perder muito nas eleições'. Nixon ouviu os líderes de seu partido e renunciou, mas com a garantia do vice que assumiu de que receberia o perdão presidencial, o que salvou o pescoço dele.
Valor: O sr. diria então que a reforma ministerial feita pelo governo não deu certo?
Fleischer: Foi até contraproducente porque trocou muita gente de lugar e acabou com três ministérios nanicos, sem importância, mas nesse troca a troca só apareceram três caras novas. E duas dessas caras novas eram do baixo clero do PMDB, indicados pelo deputado Leonardo Picciani (RJ), o líder do PMDB, sem consultar a bancada de seu partido e a bancada ficou muito revoltada. Por tabela, Picciani era o líder de um bloco na Câmara do PMDB com seis ou sete partidos. Seis desses partidos ficaram muito indignados e saíram do bloco. Piorou a situação da Dilma, em vez de melhorar. Então foi muito contraproducente. É como dar um tiro no pé ou um tiro na cabeça. E ainda esses dois baixo clero que foram para o ministério têm processos no Supremo. E o que foi para a Saúde, segundo dizem os jornais, já destituiu todos os petistas comissionados do segundo escalão, o que deu mais raiva ainda no PT, porque o PMDB recebeu o Ministério de porteira fechada.
Valor: Com o PMDB tão rachado assim, pode-se falar em ameaça real de impeachment?
Fleischer: É complicado, porque se o Michel Temer assumir, e ele pode assumir por quase três anos, seria a única chance que o PMDB teria de por as mãos na Presidência por três anos, porque eles não têm um candidato preparado viável para as eleições de 2018. Então isso dá muita saliva na boca dos pemedebistas, porém, com muito ônus. Temer presidente teria que implementar um duro ajuste fiscal, cortar muitos programas, reduzir muitas despesas. Dilma se recusa a reduzir despesas. Ela não quer nenhuma redução de despesas no programa Bolsa Família, no Minha Casa Minha Vida, etc.
• "[Reforma] foi contraprodu- cente porque trocou muita gente de lugar e acabou com três ministérios nanicos"
Valor: Tanto que mandou para o Congresso Nacional um orçamento deficitário?
Fleischer: Exatamente. Pela primeira vez na história do Brasil o governo manda uma proposta orçamentária com um déficit de R$ 30 bilhões de buraco. Foi o que bastou para a Standard & Poor's rebaixar o Brasil. E hoje [ontem] a Fitch rebaixou o Brasil em mais um degrau, não até o status inferior. Essa situação ficou extremamente complicada para Dilma, porque ela tem zero governabilidade na Câmara e está pior ainda, agora, depois da reforma ministerial. Ela não consegue aprovar nada, então está num beco sem saída. A não ser que consiga refazer sua base parlamentar.
Valor: O sr. acredita nisso?
Fleischer: Não acredito. Tudo indica que ela não tem capacidade para fazer isto. Nem ela nem seus assessores. Dizem que o novo chefe da Casa Civil, Jaques Wagner, teve um encontro sigiloso com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, no aeroporto [na realidade foi na base aérea], e ofereceu blindar ele na Comissão de Ética da Câmara, em troca de não instalar o impeachment. E aí todo mundo perguntou: ' Blindar como, se ela não tem nem governabilidade na Câmara dos Deputados, como vai segurar votos suficientes para blindar o Cunha na Comissão de Ética'? Então acho que o Cunha não acreditou muito nesse papo também não.
Valor: Na hipótese de o vice Michel Temer assumir, ele teria condições de reunir maioria para governar, como fez o ex-presidente Itamar Franco em 1992?
Fleischer: Sim, porque ele teria condições de unificar o PMDB. Temer é um político experiente e muito cauteloso e sabe como é que mexe com as pedras no Congresso Nacional, já foi presidente da Câmara duas vezes. Ele teria condições de juntar também a oposição - PSDB, Democratas, PPS, etc - e os outros partidos do meio, coluna do meio, como o PP e o PR. Eu acho que ele conseguiria construir uma maioria eficaz para governar.
Valor: Com alguma condição como a de não concorrer à reeleição?
Fleischer: Eu não sei se ele teria condições de reivindicar a reeleição em 2018, porque está sendo processada uma PEC no Congresso para acabar com a reeleição e não sei se essa emenda será bem sucedida ou não. Mas não sei se ele teria condições de enfrentar uma reeleição. Isso eu não sei. Mas eu espero que ele consiga costurar uma maioria coesa o bastante para bancar o ajuste fiscal. Isso é possível.
• "Se o Temer assumir, por quase três anos, seria a única chance que o PMDB teria de pôr as mãos na Presidência"
Valor: O sr. diria que talvez até aprovar a CPMF, que os aliados não querem dar para o PT faturar eleitoralmente?
Fleischer: Talvez dê, é possível. Mas o mais rápido e eficaz seria reduzir as despesas, o que também não é muito popular entre os deputados. Esse seria o desafio, se ele assumir a Presidência?
Valor: Professor, esse nosso sistema de presidencialismo de coalizão está esgotado, à medida que é impossível governar quase 30 partidos representados na Câmara?
Fleischer: Eu acho que sim. Nós estamos com 35 partidos aprovados para funcionar e temos 22 ou 23 partidos representados no Congresso. Eu faço parte de uma das correntes de opinião, na ciência política, de que a governabilidade é o mais importante, e isso quer dizer nove, dez, 11 partidos no máximo. Já outra corrente diz que quanto mais partido melhor para representar todas as correntes de opinião no país. Mas acho que esse modelo já se esgotou.
Valor: Por que?
Fleischer: Porque para o presidente manter uma coalizão de 13, 14, 15 partidos a fim de poder ter maioria constitucional é extremamente difícil.
Valor: Qual a saída?
Fleischer: A maneira mais fácil de fazer é proibir coligação nas eleições proporcionais para deputados. E também, se for o caso, adotar uma cláusula de barreira. Talvez não de 5%, mas de 2% ou 3% dos votos válidos. Isso eliminaria todos os partidos nanicos e alguns dos partidos médios e pequenos. Esse seria o expediente para melhorar um pouco...
Valor: Em duas ou três eleições, provavelmente, já haveria uma redução para seis ou sete partidos, não é mesmo?
Fleischer: Quando tivemos a cláusula de barreira de faz de conta de 5%, em 2006 (derrubada pelo Supremo Tribunal Federal), apenas sete partidos alcançaram os 5% dos votos válidos. E outros sete, dos 21 que elegeram pelo menos um deputado, não conseguiram sequer 1% dos votos válidos. Então esse foi o resultado de 2006.
Valor: A presidente Dilma é vítima desse sistema que o sr. considera esgotado ou de si própria?
Fleischer: Ela é vítima desse sistema sim. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também teve alguns problemas com esse sistema. Foi assim que ele perdeu a CPMF em 2007 no Senado. Não tinha maioria constitucional no Senado. Tanto que ele foi a campo, em 2010, e conseguiu derrotar cinco ou seis senadores do PSDB e do PFL. Mas a Dilma é vítima dos próprios erros dela, especialmente no primeiro mandato.
Valor: Como assim?
Fleischer: Ela não quis ouvir ninguém, muito autônoma e independente, 'eu sou economista, eu entendo tudo', nem sugestões de Lula ela quis ouvir. Como falou o ex-ministro Delfim Neto, ela é muito trapalhona.
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