- O Estado de S. Paulo
A prova de que a crise é grave está na dificuldade de vislumbrar o futuro.
No penoso e desajeitado esforço para superar o seu atraso secular de país colonial, escravocrata e patrimonialista, o Brasil moveu-se à frente sempre que animado por um ou mais “projetos” de modernização. Estes só se tornaram de fato democráticos a partir do fim do regime militar. Na Constituição de 1988 o País projetou a aspiração de construir um moderno Estado democrático, assegurador dos direitos civis e políticos e comprometido com a universalização dos direitos sociais. De olho no futuro, elevou o meio ambiente à condição de bem público a ser protegido. Com um pé no passado, consagrou monopólios estatais anacrônicos. Por isso, antes mesmo de completar dez anos, a nova Carta teve de ser reformada, não para desfigurá-la, mas para permitir ao Brasil navegar nos mares da globalização.
No primeiro mandato de FHC se criaram agências reguladoras com independência técnica e financeira para impedir a sua captura por interesses políticos clientelistas e para evitar que monopólios privados viessem a substituir os monopólios estatais. No segundo mandato, a Constituição foi complementada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, com o objetivo de assegurar que os governos respondessem às demandas da sociedade sem sacrificar o equilíbrio estrutural das contas públicas, pedra angular da estabilidade econômica propiciada pelo Plano Real. Essa construção institucional se fez juntamente com a implantação de um amplo leque de programas de Estado e do aumento dos gastos na área social. Como não há almoço grátis, a carga tributária passou de 26% a 34% do PIB em oito anos. O segundo mandato terminou com uma alternância real de poder, feita em moldes civilizados, marca de uma democracia madura.
Tais avanços se deram concomitantemente à permanência de elementos do atraso: o clientelismo, fenômeno com origens na Velha República, presente nas relações entre o Executivo e o Congresso; e o corporativismo, herança do Estado Novo, que inscreveu seus privilégios na Constituição “cidadã” em favor de determinadas categorias das burocracias estatal e sindical, de patrões e empregados. Esses elementos seguiram vigentes, mas enfraquecidos, pela modernização do Estado e da economia. Pelas mesmas razões se tornou menor a influência desproporcional de um punhado de empresas sobre o processo decisório.
Na transição para o governo Lula e no curso dos anos iniciais do seu primeiro mandato, pareceu que o “projeto de modernização” impulsionado no período FHC teria continuidade pelas mãos de um partido de esquerda convertido à social-democracia e de um líder com uma trajetória individual e política que simbolizava as maiores aspirações da Constituição de 1988. Prefigurava-se a consolidação de um sistema político estruturado em torno de duas forças social-democratas, uma mais à esquerda e outra mais liberal, representativas dos setores mais modernos da sociedade brasileira. Ledo engano.
Como ficou claro a partir do escândalo do mensalão, sob o verniz de um partido de esquerda aggiornato se encontrava o PT velho de guerra. É verdade que não mais aquele condomínio confuso de tendências, em grande parte sectárias, mas uma organização burocrática comandada operacionalmente por José Dirceu e liderada pelo carisma de Lula. O partido havia se tornado pragmático, disposto a fazer alianças à sua direita, mas suas práticas e mentalidades seguiam presas à matriz sindical e às tradições da esquerda latino-americana, nostálgica do castrismo e seduzida pelo “socialismo do século 21”. Para não falar de apetites mais mundanos.
Hoje só mesmo a cegueira ideológica impede enxergar que o PT perdeu a capacidade de liderar qualquer projeto de modernização e Lula já não simboliza as aspirações de um Brasil desenvolvido, democrático e justo. O partido monetizou o clientelismo e soldou o corporativismo estatal, empresarial e sindical à base de recursos públicos e da corrupção sistêmica. E tem se revelado inteiramente incapaz de autocrítica diante dos malfeitos praticados.
O drama é que tampouco o principal partido da oposição, o PSDB, se mostra à altura do desafio de retomar o bastão da liderança e reencaminhar o projeto de modernização do Brasil.
Ao contrário do senso comum corrente, as agendas do ajuste fiscal estrutural, da eficiência e da produtividade, de um lado, e a da distribuição de renda, do combate à pobreza e do desenvolvimento social, de outro, podem e devem se reforçar mutuamente. Na teoria não é difícil desenhar uma agenda que compatibilize esses objetivos no médio e no longo prazos. Implementá-la está longe de ser impossível, em que pesem as tensões que inevitavelmente surgirão na execução de seus objetivos durante o percurso, sobretudo ao início, dada a gravidade da crise.
Falta, porém, uma aliança de atores políticos e sociais que recrie uma nova perspectiva de futuro. Esta deverá ter a Constituição como guia, pois suas aspirações continuam válidas, embora os meios para concretizá-las devam ser ajustados, o que implica reformas constitucionais.
A safra de líderes não é brilhante, o sistema de partido está desorganizado, os velhos movimentos sociais estão cooptados, os novos correm à margem das instituições, a sociedade está perplexa e polarizada. De positivo, apenas o Judiciário e as instituições de controle, frutos maduros da Constituição de 1988. Mas a Justiça não pode nem deve substituir a política.
Nessa esfera, falta liderança em toda parte. Na Presidência ela é dramática. Dilma até pode se segurar na cadeira presidencial, amparada em argumentos jurídicos contra o impeachment e comerciando apoios com a “base aliada”. A questão que interessa, porém, é outra: pode e merece o Brasil esperar mais três anos para começar a construir uma nova perspectiva de futuro?
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Sergio Fausto é superintendente executivo do IFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, É membro do Gacint-USP.
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