• Presidente morto antes da posse adotaria política econômica mais conservadora que Sarney
- Folha de S. Paulo
Só um gênio do realismo mágico, como o escritor Gabriel Garcia Márquez, seria capaz de contar a história da presidência de Tancredo Neves, a que não houve.
Parece pura ficção o fato de que Tancredo, que se gabava de nunca ter tido nem um miserável resfriado, fosse obrigado a baixar ao hospital horas antes de sua posse, para dele sair para outro hospital e, deste, para o cemitério, faz hoje exatos 30 anos.
Aliás, a primeira cirurgia do presidente eleito foi em um cenário de Macondo, a cidade-símbolo do realismo mágico de Garcia Márquez: o hospital ficou lotado, inclusive a sala de cirurgia, de políticos que não deveriam estar presentes.
E os médicos mentiram na primeira nota oficial, ao informar que Tancredo sofrera uma crise de diverticulite, quando, conforme "furo" desta Folha, o presidente tinha um leiomioma, um tumor.
Terminava assim a história do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura. E, como se fosse pouco, Tancredo foi substituído por José Sarney, que, até meses antes, presidia o partido (a Arena) que dera sustentação ao regime militar, aquele que Tancredo deveria sepultar.
Para dar cores ainda mais fortes de realismo mágico, há o fato de que Sarney acabou adotando, em um certo momento, políticas mais à esquerda do que as que o próprio Tancredo faria.
O presidente eleito era um conservador, do que dá prova não só a sua biografia, mas o fato de ter escolhido Francisco Domelles para comandar a economia.
Se já fosse corrente à época, Domelles seria chamado de neoliberal, por ser mais preocupado com o saneamento das contas públicas e com a inflação do que com a questão social.
Não tinha o perfil mais à esquerda dos economistas do PMDB de Tancredo.
Foi a estes, no entanto, que Sarney, ex-Arena, acabou recorrendo, depois de indicar o empresário Dilson Funaro para substituir Domelles.
Rompia, com isso, de uma vez por todas, com o esquema de Tancredo, depois de ter mantido todos os ministros indicados pelo que deveria ter sido presidente.
Nem Tancredo nem Sarney eram políticos de grande popularidade.
Foi a doença, em circunstâncias tão extraordinárias, que fez do presidente eleito mas não empossado um ícone popular.
Sua agonia e seu enterro foram momentos de uma comoção nacional como só se havia visto, antes, no enterro de Juscelino Kubitschek, mineiro como Tancredo, do antigo PSD como Tancredo, mas de uma ousadia muito maior.
Já Sarney ganhou uma aura —de curta duração, é verdade— de herói popular por ter promovido o Plano Cruzado, congelamento de preços que derrubou instantaneamente a inflação, o persistente dragão que carbonizou o prestígio do regime militar.
Por tudo o que se sabe dos planos de Tancredo, ele jamais ousaria adotar um plano tão heterodoxo.
Há até dúvidas se teria de fato convocado uma Assembléia Constituinte, bandeira de seu PMDB e dos outros partidos de oposição ao regime militar.
Mas é inquestionável que Tancredo de Almeida Neves conduziu com notável habilidade, paciência e capacidade de articulação política, a transição para o regime democrático. Pena que não pôde estar presente ao momento histórico que a cristalizaria e que seria a sua posse, a que não houve.
O fato igualmente inquestionável é que se abriu, naquele ano de 1985, o mais longo período de plena e total vigência das liberdades públicas na história do Brasil.
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