terça-feira, 21 de abril de 2015

Merval Pereira - Coisas e loisas

- O Globo

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como já dizia José Genoino. As tais "pedaladas fiscais" de que o governo está sendo acusado nem "pedaladas" são, e se fossem nada haveria de errado. No jargão dos economistas, "pedalada" define postergação de pagamentos, e qualquer governo, ou empresa, que consiga, através de negociação, adiar um pagamento para reforçar seu caixa estará cometendo um ato elogiável.

O que aconteceu nesse caso, como define o economista José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), é que, em linguagem popular, o governo pedalou a bicicleta de outro sem ter pedido licença.

José Roberto Afonso foi um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal, e é com essa autoridade que garante: nada parecido foi feito no governo de Fernando Henrique, e nem mesmo nos de Lula. O crime está caracterizado pelo fato de que, segundo auditores do Tribunal de Contas da União (TCU), entre 2013 e 2014 o governo Dilma atrasou "sistematicamente" o repasse de recursos a Caixa, Banco do Brasil e BNDES para pagamento de Bolsa Família, auxílio desemprego, equalização da Safra Agrícola e Programa de Sustentação do Investimento (PSI).

Sem o dinheiro do Tesouro, os bancos estatais passaram a fazer os pagamentos com recursos próprios. A prova é que o BNDES enviou ofício ao BC avisando que o Tesouro deveria pagar juros por esse dinheiro até o momento do repasse oficial do Tesouro. Por orientação da Advocacia-Geral da União, o pagamento de juros foi negado, pois caracterizaria o empréstimo, que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Mas o fato de não ter pagado juros não tira o caráter de empréstimo do que foi feito. A diferença então é esta: "pedalada" adia o pagamento em negociação com o credor; empréstimo é quando o pagamento é feito na data correta por outra fonte de receita.

O artigo 36, caput, da lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a famosa Lei de Responsabilidade Fiscal, é taxativo: "É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo".

Tal operação constitui crime de responsabilidade, nos termos do artigo 11, inciso 3, da lei 1.079, de 14 de abril de 1950: "Art. 11. São crimes de responsabilidade contra a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos: 3) contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal".

O governo bate na tecla de que tecnicamente não houve empréstimo, mas, por via transversa - o que é mais grave, já que se trata de ardil para burlar a lei -, obteve-se o que ela proíbe. Isso não quer dizer, no entanto, que o crime atinja necessariamente Dilma, dando margem a pedido de impeachment.

Mesmo que se saiba que nada era feito no seu 1º governo sem que ela autorizasse diretamente. A equipe econômica do ministro Guido Mantega não tinha a autonomia que a de Joaquim Levy tem - que também não é completa. Boa definição do que sejam os limites de Levy está na sua declaração de que a dívida pública do Brasil é administrável.

Na mais recente reunião ministerial, o ministro Joaquim Levy, a determinada altura de sua exposição, disse que a dívida pública era alta. Foi interrompido pela presidente Dilma, que o desautorizou na frente dos demais ministros: "Não é alta, não, Levy". Mostrando que está aprendendo a ter jogo de cintura, o ministro da Fazenda não reagiu de imediato, mas aproveitou outro momento da palestra para voltar ao assunto e dizer: "A dívida pública, que, como disse anteriormente, não é alta...". Tirou gargalhadas da própria presidente e seguiu em frente.

Voltando ao impeachment, é preciso, como diz o ex-presidente Fernando Henrique, deixar que o processo do TCU siga seu caminho até o final, para ver quem serão os acusados pelo crime de responsabilidade. Caso a cadeia de comando chegue a Dilma, e não pare, por exemplo, no presidente do BC ou do BB e da Caixa, ainda assim é preciso esperar a atitude do Ministério Público, que será acionado pelo TCU.

É um longo processo, que precisa ser acompanhado pela oposição, mas que não está em ponto de maturidade para gerar qualquer consequência política mais grave além do desgaste permanente do governo.

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