terça-feira, 21 de abril de 2015

Calvário e glória - José Sarney

- O Globo

21 de abril de 1985
Era o fim do longo martírio de Tancredo Neves. Ouvia-se, no silêncio do tempo, o choro da nação inteira, que acompanhara os 38 dias de suplício que ele atravessara, desde aquela noite de 14 de março, chamada por José Augusto Ribeiro, na sua notável biografia de Tancredo Neves, de "A noite do destino".

15 de março de 1985
À 1h10m da madrugada, faltando nove horas para sua posse no Congresso, o doutor Pinheiro da Rocha começa a abrir o abdômen de Tancredo Neves. Ele tinha aceito ser operado pela iminência de morte, cianótico, com tremores, febre, taquicardia que chegara a 170 batidas por minuto. Quando o cirurgião abre a cavidade abdominal desaparece o diagnóstico: não era apendicite supurada. Comemora-se na sala de operação.

Pinheiro da Rocha acha um tumor benigno, "um leiomioma pedunculado necrosado em abcesso, a cerca de 50 cm da válvula ilíaca". Remove-se o tumor. É uma operação difícil. Quinze vezes tenta o anestesista introduzir uma sonda gástrica. A pressão e os batimentos cardíacos de Tancredo oscilam. Sofre muito. Tem uma paralisia respiratória: "dispneia intensa e progressiva, grande agitação para respirar". Faz um edema pulmonar agudo, começa a entrar em choque. Os doutores Rocha e Renault, chamados, voltam correndo. Falavam à imprensa que a operação fora um sucesso. Os anestesistas lutam desesperadamente para recuperá-lo. Ele ressuscita. Irmã Ester, irmã de Tancredo, diz a Dornelles: "Tancredo morre."

Hoje se sabem detalhes de tudo. Naquela noite e madrugada, ninguém sabia de nada, a não ser que tudo correra bem.

14 de Março de 1985
Ninguém está preparado para essa cilada da História. Brasília é só festa pela volta da democracia, luzes e alegria. A realidade imita a ficção. Chego às 22h30m ao Hospital de Base, onde Tancredo já está internado. Lá encontro Ulysses. Tenho os olhos marejados. Rasga-me a alma o sofrimento de Tancredo. Ulysses me desperta ríspido: "Sarney, não é hora de sentimentalismos. Nossa luta não pode morrer na praia. Temos de tomar decisões. Você assume amanhã, como manda a Constituição, na interinidade do Tancredo." "Não, Ulysses, assume você. Só assumo com Tancredo." "Você não pode acrescentar problemas aos que estamos vivendo. É a democracia que temos de salvar." Saímos ao corredor. Grande aglomeração. Não se discute a tragédia de Tancredo. Discute-se o Poder. Ulysses articula a parte política. A área militar contrária à abertura tenta mobilizar-se.

Figueiredo não aceita que eu assuma. Walter Pires ensaia voltar ao Ministério do Exército, e Leitão de Abreu - cujo papel até hoje é minimizado - é o equilíbrio, o bom senso que evita o desastre.

O Supremo Tribunal Federal reúne-se secretamente para decidir quem assume e resolve, contra os votos dos ministros Sydney Sanches e Galloti, que deve ser o vice eleito.

A História do Brasil está em erupção naquela noite de medos entre perplexidades e improvisações. A Mesa do Congresso decide pela minha posse. Há resistências. Eu, em estado de comoção e depressão, estou em casa e de nada sei. Leônidas e Fragelli, às 3h da manhã, me dizem ao telefone: "Boa noite, presidente." "Não quero assumir." Leônidas: "Não temos mais espaços para erros. Boa noite, presidente." O golpe ronda. A desorientação também.

Sabe Deus o que me esperava. Mas realizei a transição e nasceu a Constituição de 88, criamos uma sociedade democrática e venci 12 mil greves. A democracia não morreu em minhas mãos.

Dia 21 de abril de 1985, há 30 anos
Incor, 22h24m. Em torno do leito de Tancredo mártir, dona Risoleta, Tancredo Augusto e esposa, Inez Maria, Maria do Carmo, Aécio, Andrea, Angela e Irmã Ester. A máquina da vida começa a desmontar-se. Sua alma liberta-se do corpo e segura na mão de Deus. Cinco minutos depois, Mauro Sales avisa-me. Choro compungido e dobro os joelhos em oração. Vejo a certeza de todas as incertezas. Afonso Arinos proclama: "Muitos deram a vida pelo Brasil, Tancredo deu a morte."

Do seu sofrimento surgiram estes 30 anos de paz e de consolidação da democracia no país. É Tancredo a inspiração destas três décadas. Na eternidade junta-se a Tiradentes.

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