- O Globo
• Anos difíceis são todos. Claro, alguns são mais difíceis porque trazemos na memória feridas abertas e mal fechadas, fracassos secretos que nos afligem
De vez em quando, dá vontade de mudar de assunto, desorientar nossos interlocutores com temas inesperados, nem sempre próprios às meditações de fim de ano. Dá vontade de dizer que o que passou, passou, e o que há de vir é inescrutável. Assim como não temos o poder de mudar o passado, tampouco o temos de tornar o futuro aquilo que sonhamos.
Anos difíceis são todos. Claro, alguns são mais difíceis porque trazemos na memória feridas abertas e mal fechadas, fracassos secretos que nos afligem mais do que aqueles que são do conhecimento de multidões. Talvez o fracasso não seja nada mais, nem menos, que o nosso próprio segredo, a nossa indisposição em revelar o que acabou por nos acontecer. Como se fôssemos responsáveis (ou, pelo menos, únicos responsáveis) por tudo o que nos acontece.
O país vai mal, todo mundo sabe disso, os que gostam e os que não gostam de nossos líderes. Ao longo dos anos, já vi o Brasil passar por muitas crises, mas poucas como essa. E havia sempre o consolo de saber por quem torcer, um dos lados em disputa havia de ter razão, de merecer o nosso apoio. E ali depositávamos nossa confiança, mesmo que derrotados. Uma confiança quenos ajudava a viver, ainda quen ã onos ajudasse amais nada.
Foi assim, por exemplo, na crise nacional mais grave a que assisti em minha vida, o golpe de Estado de 1964. Perdemos. De esperança de uma nova civilização mundial, nos tornamos, da noite para o dia, exemplo clássico de uma República das Bananas, força mixuruca a serviço do que havia de mais poderoso no mundo. Pagamos caro pela derrota. Não apenas os longos 21 anos de ditadura militar, de repressão do pensamento livre, prisões e mortes de militantes, mas também a negação do sonho, o veto radical à imaginação, o desprazer em viver.
Mas, apesar de tudo, havia sempre a secreta esperança de que o nosso lado ressurgisse impávido dos restos da luta, que nossa força fosse recuperada por milagre e um novo dom Sebastião viesse nos salvar daqueles tempos sombrios. Um dom Sebastião que, ao longo daquelas duas décadas, teve nomes diversos, consagrados e desconhecidos. Nós tínhamos por quem torcer.
No Brasil de hoje, é quase impossível dizer a mesma coisa. Com todo o respeito por aqueles que acreditam, devo confessar que perdia fé dos anos da ditadura, não vejo mais por quem torcer, de quem esperara redenção. É como se eu e o país tivéssemos perdido a confiança no que Hanna Arendt chamou de “a única elite política efetiva, a elite autossele cionada no território daqueles que se sentem felizes em se preocupar com a coisa pública”. Talvez tenha me dado um excesso de desesperança, mas não vejo mais ninguém feliz em se preocupar com a coisa pública, no sentido quase sagrado da tradição sebastianista que herdamos de Portugal.
E, no entanto, aí está um novo ano que começa hoje, como um desafio à perseverança brasileira em sonhar. Os jornais da semana, os noticiários da televisão, os palpites publicados em redes sociais, tudo parece de repente conquistado pela volúpia do futuro, a volúpia em crer na transformação humana sempre para melhor, mesmo que o genocídio bélico na Síria se agrave, mesmo que Donald Trump vá tomar posse em janeiro, mesmo que os refugiados norte-africanos se afoguem nas águas azuis do Mediterrâneo, mesmo que o fascismo renasça poderoso na Europa cansada de resistir.
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que lecionou na Universidade de São Paulo, escreveu em seu livro “Tristes Trópicos”, nos anos 1950, que, em nosso país, as coisas passavam da barbárie à decadência, sem conhecer a civilização. Como se o Brasil fosse uma paisagem de ruínas que não conheceu um apogeu. Um pouco como Benjamin Moser define a cidade de Brasília e seu significado político-cultural: um suntuoso Cemitério da Esperança. Sabemos enterrar com grandeza e pompa nossas esperanças, antes que elas ameacem se transformar em realidade.
Talvez, portanto, seja bem certo chamar o Brasil de “o país da esperança”, como tantos pensadores de nossa fase pós-colonial, nacionais ou não, decidiram nos eleger. Somos o país da eterna esperança, a esperança que não se torna história para não perder seu charme único, o sentimento de que, se vencermos mais um ano, chegaremos lá, não sabemos bem aonde, ou se é preciso chegar. E é isso o que nos dá prazer. A eterna esperança que nos faz dançar no carnaval, à espera dos dias melhores que nem precisam vir, pois ela nos alimentará para sempre como povo único e muito especial.
Pode ser que um dia nos cansemos disso tudo. Pode ser que a violência crescente vença a esperança de vez. Ou que aconteça um milagre público, não sei. Mas isso é uma outra historia, para outros dias de Ano Novo.
----------------
Cacá Diegues é cineasta
Nenhum comentário:
Postar um comentário