O governo decidiu enviar ao Congresso nova versão do projeto de lei complementar (PLC) que regulamenta os acordos de renegociação de dívidas que vêm sendo discutidos entre a União e os Estados em calamidade financeira, principalmente Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Chamado de Regime de Recuperação Fiscal (RRF), o projeto estabelecerá as condições gerais para a celebração desses acordos, tais como os critérios de elegibilidade, prazo de vigência e contrapartidas a serem adotadas pelos entes federativos “em recuperação”.
Com o projeto, o Ministério da Fazenda pretende dar segurança jurídica aos novos contratos, que seriam passíveis de questionamentos judiciais futuros diante da falta de embasamento legal específico e até mesmo do flagrante conflito com a legislação em vigor, como é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que veda a concessão de novos empréstimos a Estados que descumprem os limites de endividamento e custeio da folha de pagamento do funcionalismo.
Enquanto o projeto de lei complementar que institui o RRF ainda está em elaboração e as medidas de ajuste ainda nem foram submetidas pelos governadores à deliberação das Assembleias Legislativas estaduais, a assinatura dos acordos – e, consequentemente, o alívio nas contas dos Estados – dependerá de decisão liminar da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, ou do plenário da Corte.
A vigência imediata dos efeitos da recuperação fiscal interessa primordialmente aos Estados em situação mais crítica, como o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul. Em tese, não há novidade na adoção da chamada “antecipação de tutela”, instituto jurídico que já encontra amparo no artigo 273 do Código de Processo Civil. A excrescência, nesse caso, é que agora se trata de antecipar os efeitos de uma lei que ainda não está em vigor – na verdade, não existe nem como projeto. Presume-se que ela será aprovada tão somente porque a alternativa é assustadora. Se autorizar a assinatura dos acordos e iniciar a produção dos efeitos da lei que ainda não passa de uma ideia, o Supremo, mais uma vez, irá adentrar uma seara para a qual não lhe é outorgado o acesso pela Constituição. O governo, por sua vez, entendeu a gravidade de prosseguir as tratativas com o Rio nos termos até então empregados – a ponto de incorrer em crime de responsabilidade, mantida a estratégia de antecipação dos efeitos do RRF – e passou a tratá-lo como uma mera “carta de intenções” até que o Congresso e a Assembleia do Estado o aprovem.
Por mais hábeis que sejam os malabarismos retóricos e doutrinários executados para sustentar a legitimidade da medida, ao fim e ao cabo se estará diante do atropelo de uma prerrogativa do Legislativo. Ao Congresso não cabe meramente chancelar projetos de lei de iniciativa do Executivo, mas discuti-los e até mesmo modificá-los. Não há garantia de que o teor de qualquer projeto de lei encaminhado pelo Executivo siga o trâmite legislativo sem sofrer alterações. Como cogitar, então, da antecipação de seus efeitos? Por mais benevolência que se possa ter com os Estados em crise, a antecipação dos efeitos de um RRF trará mais embaraços do que soluções.
Como já dito neste espaço, o atual impasse jurídico em que se encontram as renegociações entre a União e os Estados endividados tem origem na liminar concedida pela ministra Cármen Lúcia ao governo do Rio de Janeiro, proibindo a União de bloquear recursos do Estado devidos ao Tesouro Nacional como garantia do cumprimento de obrigações contratuais legítimas. Vale dizer, a presidente do STF sustou os efeitos de um ato jurídico perfeito, sacramentou a quebra de um contrato e hoje não apenas o Rio, mas outros Estados encontram-se diante de um suspense jurídico que só aumenta o drama de milhões de cidadãos, sejam os que se veem privados de serviços públicos, sejam os servidores que estão há meses sem receber salários.
Não há saída para a crise dos Estados fora da Constituição. Os envolvidos no processo de renegociação – em todas as esferas e instâncias – devem a ela inarredável observância. Um projeto de lei – mesmo aqueles com a urgência do Regime de Recuperação Fiscal – deve seguir rigorosamente o rito disposto no texto constitucional e, uma vez aprovado, só então produzir seus efeitos.
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