Livro de Thomas More lançado em 1516 descreve o sistema político ideal de uma ilha imaginária
Antonio Gonçalves Filho | O Estado de S. Paulo
Primeiro lançamento da coleção Clássica da Editora Autêntica, Utopia, de Thomas More, que completou 500 anos em 2016, chega às livrarias num momento de turbulência política e recessão econômica no Brasil, exatamente o que não existe na ilha modelar imaginada por More – uma sociedade em que tudo pertence a todos e a busca do bem comum é lei. Como no Brasil tudo funciona ao contrário – o que é um bem comum é de ninguém –, a palavra distopia parece fazer mais sentido aqui, lembrando apenas que, como escreveu o autor (de ficção científica) China Miéville num artigo publicado pelo jornal The Guardian, o utopismo não é esperança, muito menos otimismo, mas uma necessidade e um desejo.
O desejo, claro, é o mesmo que motivou More a escrever seu clássico sobre os antípodas, traduzido no Brasil diretamente do latim por Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, que considerou não só os aspectos políticos como os literários e históricos presentes na obra. Logo no início do primeiro livro de Utopia, assinala o tradutor, no trecho em que o narrador descreve seu encontro com o navegador português Rafael Hitlodeu, uma alusão literária aos primórdios da literatura ocidental revela esse desejo mimético de More, o de replicar os antigos relatos de viajantes (de Ulisses na Odisseia, por exemplo).
Apenas para quem ainda não leu, o clássico Utopia é dividido em dois livros: no primeiro, More traça um panorama crítico de seu país (a Inglaterra), sendo bastante corrosivo a respeito das estruturas de um Estado que favorece a corrupção e o roubo. Na segunda parte, que fala da ilha Utopia, More apresenta uma sociedade alternativa (ainda que o neologismo criado por ele venha acompanhado de uma contradição, a do não-lugar/u-tópos).
More não foi o primeiro a imaginar uma sociedade ideal – e certamente tinha consciência de que o exemplo modelar da ilha Utopia (A República de Platão) não era assim tão perfeito – considerando ainda que a perfeição é monstruosa, não humana. Uma sociedade em que nada é de ninguém e o bem comum é mais importante que o bem individual pode ser modelar para os construtores de utopias (Proudhon, por exemplo) e certamente se apresentava como uma alternativa atraente à sociedade europeia do século 16, mas uma cultura perfeita é igualmente uma cultura estagnada, parada no tempo, como os tubarões, que são os mesmos há dois milhões de anos.
Talvez por isso, do século 20 em diante, a literatura caminhou por outra estrada, a da distopia. Um século dinâmico, que mudou a civilização com inovações tecnológicas e descobertas, só podia mesmo ter produzido autores como o russo Zamiatin, Aldous Huxley e George Orwell, bastante desconfiados sobre o funcionamento da sociedade “ideal” de More, que teria algo de totalitária. Distopia, contudo, não é antônimo de utopia. Orwell não escreveu 1984 apenas para denunciar a engrenagem totalitária de uma sociedade que vive para o coletivo, mas para nos alertar que cabe a cada um lutar contra a vigilância do Grande Irmão e defender as liberdades individuais.
Em Utopia, também More propõe um sistema alternativo de governo. Na ilha descrita pelo explorador português (fictício) Rafael (alusão ao anjo anunciador), tudo parece indicar o paraíso recuperado sobre a terra: a intolerância é condenada; as pessoas podem escolher sua religião e o dinheiro foi abolido da terra – inspirada, é provável, nos lugares exóticos visitados pelos navegadores europeus do século 16 (não se pode esquecer que Utopia foi lançado em 1516, 24 anos após a descoberta da América). Porém, e sempre existe uma conjunção adversativa, na ilha sonhada por More persiste a escravidão e os ladrões têm suas orelhas cortadas.
Ainda assim, Utopia é uma ilha da fantasia administrativa em que a razão conserva muito do cristianismo ético de More (que foi decapitado por isso) e de sua crença na igualdade entre os sexos (foi pioneiro ao educar as filhas nos moldes da educação clássica que formou seu filho, isso no século 16). Rompendo com a tradição bélica dos impérios, o humanista More faz a guerra virar palavrão em sua ilha, ainda que seus cidadãos se preparem para combater, caso seja necessário (para defender suas fronteiras, por exemplo).
As leis em Utopia são pouquíssimas. More justifica a razão: quanto mais simples for sua interpretação, mas justas os utopienses as consideram. Mas o visconde de Londres não se pronuncia assim tão facilmente. Ao final do segundo livro, Thomas More faz questão de deixar claro que não pode assentir com todas as coisas descritas pelo navegador português Rafael sobre a ilha Utopia. Mas admite que existem na república dos utopienses muitas coisas “que desejaria que houvesse em nossas cidades”. Nós, filhos de More, podemos dizer o mesmo.
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