- O Globo
A fiscalização da carne brasileira tem quatro níveis de qualidade. A operação da Polícia Federal foi no que é considerado o melhor. A inspeção federal sempre foi a mais segura, agora se sabe que frigoríficos podem comprar fiscais. Um terço da carne brasileira não tem qualquer fiscalização. E há também a inspeção a cargo dos estados e dos municípios, bem menos rigorosa.
Este é um bom momento para o governo olhar o mercado de carne como um todo, melhorando cada fatia. E de o setor dar novos saltos na qualidade da carne. As grandes companhias foram flagradas em um comportamento inaceitável e, por isso, não adianta pôr a culpa na PF.
O consumidor merece nada menos do que uma carne livre de riscos sanitários, e que também não seja produzida à custa do desmatamento e do trabalho degradante. Nos últimos anos, uma parte do setor caminhou, empurrado por ONGs e órgãos do governo, para aumentar os compromissos com a carne livre de qualquer risco. Mas tem havido retrocessos. O que a PF flagrou foram erros no segmento do mercado onde se pensava que havia menos problemas.
A Polícia Federal investigou a denúncia que recebeu. E continuará investigando. Ela viu que há gradações diferentes, e isso está nos documentos de 400 páginas que foram liberados. A propósito, a história do papelão não está na decisão do juiz. A carne estragada, ou com outras impropriedades para o consumo, é de pequenos frigoríficos. Mesmo assim, o que foi encontrado de BR Foods, das marcas Sadia e Perdigão, e JBS, das marcas Seara e Big Frango, já é suficientemente ruim. É uma relação promíscua entre empresa fiscalizada e órgão fiscalizador.
Na página 66 das 400 que compõem a peça do juiz Marcos Josegrei, está escrito o seguinte sobre um funcionário da Seara, do grupo JBS. “Flávio Evers Cassou (da Seara do grupo JBS) tem uma relação quase societária com Maria (do Rocio, chefe da fiscalização do Ministério da Agricultura no Paraná) e reiteradamente agracia a estimada amiga com lotes de carnes, produtos e dinheiro. Desde o início das interceptações, Maria conversa com Flávio sobre a entrega a ela de carnes, produtos alimentícios, ou mesmo dinheiro, envolvendo apelidos (balde, processo, dedos e luvas).” O representante da Seara tem reuniões e conversas estranhas com os chefes da fiscalização e pedidos ainda mais estranhos. E Flávio Cassou tem o salário pago pela Seara, mas trabalha como fiscal do Ministério da Agricultura.
Na página 55: “Em diversos diálogos travados entre os investigados Roney e Maria do Rocio geralmente após solicitação de favor de uma das partes, como contraprestação de outra parte, vinha o oferecimento de 'favores' e ‘facilidades'”. Roney é gerente de relações institucionais da BRF. Isso são apenas dois pequenos trechos. Há inúmeros outros indícios, conversas cifradas, comportamentos completamente errados na relação entre fiscal e fiscalizado.
Como exemplo, uma das conversas. “(Flávio, da Seara): Outra coisa, os dedos seriam para terça, mas eu consegui uns dedos aí pra… Maria: Segunda? Flávio: Pra já se quiser. Maria: Ai, claro que eu quero. Flávio: Daí eu vou enfiar no pacote, dentro do pacote”.
Tenho dito desde o começo que os casos e as carnes estão misturadas nesse escândalo. Ou seja, o que saiu de pior foi em relação aos pequenos frigoríficos do Paraná. A BR Food’s está mais encrencada que o JBS, porque tem uma unidade que tinha que ter sido fechada, a de Mineiros, e só agora o foi por determinação do juiz.
Houve dez meses de interceptação telefônica cuja autorização era, a cada 15 dias, renovada pelo juiz. E ela levantou muitos indícios. A melhor resposta do governo é aumentar a inspeção, a transparência e a prestação de contas ao consumidor, seja ele brasileiro, seja estrangeiro.
Tudo foi tratado, até agora, apenas como uma crise econômica, que ameaça a balança comercial e que é preciso proteger a “proteína” brasileira. Essa é uma dimensão do problema. Mas a maior preocupação deveria ser com a saúde do país. Empresas, governo, varejo devem trabalhar com esse foco. Ele é o ponto central.
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