- O Estado de S. Paulo
A Constituição deveria ser sobre princípios, e não um programa de governo; não é feita para dar o resultado da partida. fixa as regras do jogo
Um dos grandes dramas da Constituinte foi sua duração, que parecia não ter fim, impacientava a opinião pública, tirava o élan dos seus participantes, paralisava o Congresso nas suas funções não constituintes e tornava ainda mais incertas as expectativas sobre o futuro. Duas figuras se destacaram para limitar o processo: Ulysses Guimarães, na sua magistral condução em plenário, e Nelson Jobim, com sua criatividade, respeitada e acatada, para abreviar impasses.
Um exemplo foi sua ideia das emendas de fusão, que reduziam confrontos e impasses entre parlamentares, permitindo a muitos assinar emendas que se aglutinavam não raramente mediante a transposição de uma simples preposição “de”. E os parlamentares ficavam felizes de integrar a lista dos coautores das emendas aprovadas. Tal modalidade de emenda foi incorporada ao regimento interno da Câmara dos Deputados com o nome de “aglutinativa”, por sugestão do deputado José Bonifácio Tamm de Andrada (o “Andradinha”), aliás, um constituinte exemplar.
A minha convicção era de que a Constituição deveria ser sobre princípios e regras do jogo, e não um programa de governo. Ela não é feita para dar o resultado da partida. Ela fixa as regras do jogo. Mas toda a prolixidade da nossa Constituição pode ser explicada pela história. O Brasil vinha de um regime autoritário e havia o receio de que um próximo governo pudesse anular as chamadas conquistas.
A prolixidade não precisa ser provada; é evidente: 250 artigos e 70 disposições transitórias, com numerosos parágrafos e incisos, muitos deles típicos de leis ordinárias, decretos, portarias ou simples declarações de intenção em discursos parlamentares. Um exemplo pitoresco? A constitucionalização da existência da Justiça Desportiva e a garantia de: “a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional”, o que, por óbvio, deixou de fora o futebol, o vôlei e o basquete...
Do ponto de vista ideal, acho que deveríamos pensar em uma nova Constituição. Mas não vejo, no momento atual, condições para isso. Talvez tivesse que ser algo para depois das eleições de 2018 – o que não quer dizer que não se possam fazer mudanças. Eu, por exemplo, faria mudanças no sistema eleitoral. O voto proporcional para deputados como está posto hoje é uma tragédia. Mas não existem condições políticas para isso. Você tem uma crise institucional que não se resolveria com essa ideia de constituinte. Nós precisamos, primeiro, ultrapassar essa fase.
Mas poucos parecem divergir, a esta altura, da constatação de que o principal mérito da Constituição de 1988 é a consagração das liberdades democráticas – de opinião, manifestação e organização – e das garantias individuais: a criminalização inequívoca do racismo, a abolição do banimento e da pena de morte, o livre exercício dos cultos religiosos, o repúdio à tortura e a tratamentos desumanos ou degradantes dos cidadãos, etc. Isso tudo ficou condensado no Artigo 5º, o mais extenso da Carta, com 78 incisos e quatro parágrafos.
À parte as liberdades públicas e individuais, destaco, em planos distintos, como os maiores avanços da Carta de 1988: a concepção do SUS; a criação de um fundo (posteriormente, na lei que o regulamentou, chamado FAT) que reuniu as contribuições do PIS/Pasep para tornar viável o seguro-desemprego e, ao mesmo tempo, financiar investimentos; o dispositivo que definiu o salário mínimo como o piso dos benefícios previdenciários de prestação continuada; os capítulos que lidam com finanças públicas e controle externo ao Executivo e ao Legislativo – os Tribunais de Contas, por exemplo, foram extremamente fortalecidos nas suas atribuições; novos marcos para a política ambiental; o fortalecimento do Ministério Público; e a instituição do segundo turno na eleição para presidente, governadores e prefeitos em cidades com mais de 200 mil eleitores.
Diga-se, a respeito das finanças públicas, que a nova Constituição incluiu os dispositivos que viriam a dar sustentação legal para a futura Lei de Responsabilidade Fiscal.
*José Serra é senador pelo PSDB-SP e foi deputado constituinte
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