Para embaixador, boa parte da retórica do presidente americano busca intimidar parceiros para que restrinjam exportações aos EUA, o que pode ter impacto negativo para o Brasil. Ele classifica o protecionismo como uma ameaça à economia mundial
Lucianne Carneiro | O Globo
Com 80 anos completados recentemente, o embaixador Rubens Ricupero, ex-ministro e ex-secretário-geral da Unctad (agência de desenvolvimento da ONU para comércio e desenvolvimento), vê com preocupação o avanço do protecionismo no comércio mundial e alerta para impactos negativos ao Brasil da estratégia de ameaças de Donald Trump a seus parceiros comerciais.
Ele critica de forma veemente a ausência da palavra protecionismo no documento final do encontro do FMI, ao classificar como “sinal grave da debilidade e da falta de coragem frente às grandes potências”.
Ricupero, que participou de apresentação promovida pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) sobre os primeiros cem dias do governo Trump, comparou a economia brasileira a um paciente que se recupera após uma doença grave — sem energia para nada durante a convalescença — e condena o atual sistema político, que considera criar cada vez mais danos.
Como o senhor vê os primeiros cem dias do governo Trump?
No balanço geral, a conclusão é negativa, tanto no caráter excêntrico e aberrante do comportamento dele quanto em certas posições tomadas, como em comércio, imigração, refugiados e aquecimento global. Ele mostrou que não é contra o comércio mundial, mas é contra os EUA terem déficit. Boa parte da retórica, até das ameaças, se destina a intimidar os parceiros para que aceitem “voluntariamente” restringir as exportações para os EUA. Muitas vezes ele tem êxito, como no caso da Carrier e da Ford, e no encontro com o presidente da China. Eles concordaram em um período de cem dias para melhorar a situação do comércio e a China se empenharia em aumentar as compras dos EUA.
Isso pode afetar o Brasil?
Obviamente somos concorrentes nas vendas de carnes, de soja, de milho, de frango... Se a China aumenta as compras dos americanos nessas áreas é muito ruim. Isso mostra como a ação de Trump pode distorcer o comércio global. Isso não tem a ver com competitividade. É uma aparente atitude lunática e imprevisível, mas no fundo é um método para conseguir mais.
Como avalia a política econômica?
Sua política pode comprometer a economia americana, que já deu sinais preocupantes. O impacto se dá seja pelo protecionismo comercial ou pelo agravamento do déficit e da dívida americana, como resultado dos cortes de impostos sem redução equivalente de despesas. Estudos mostram que o índice de mortalidade de brancos pobres nos EUA tem aumentado muito nos últimos 20 anos.
O que espera do corte de impostos?
A política na verdade beneficia sobretudo os muito ricos, baseado numa premissa, que nunca foi provada na prática, de que o corte de impostos vai levá-los a investir e aumentar o crescimento econômico.
E o efeito sobre a dívida?
Tenho medo de que a política gere mais dívida e o banco central americano poderia aumentar muito o juro para combater isso. Receio que crie uma situação similar ao que se viu nos anos 1980 e que causou a crise da dívida externa da América Latina. O Brasil não tem problema econômico externo no momento, mas tem sido beneficiado por duas coisas: a liquidez mundial e a aceleração do crescimento mundial graças à retomada chinesa.
Isso pode mudar?
Se, de repente, o juro americano começa a subir, vai haver menos liquidez. Embora nossa dívida oficial não seja grande, a dívida das empresas brasileiras em dólar é muito grande. Ao mesmo tempo, se a política protecionista americana afeta a China, pode ter efeito sobre o Brasil. De um lado, pressiona chineses a comprarem dos EUA em detrimento do Brasil. Do outro, a China cresce menos. O único lado positivo até hoje é que Trump até o momento poupou o Brasil em seus tuítes. Em geral quando menciona é para dar suas cacetadas.
O documento final do encontro do FMI não trouxe a palavra protecionismo. Qual é o significado disso?
É um sinal grave da debilidade e da falta de coragem do FMI frente às grandes potências. Tenho orgulho de ter dirigido a Unctad. Sempre dissemos a verdade aos grandes. Em um relatório de 1997, assinado por mim, afirmamos que se a direção da economia mundial continuasse a concentrar a renda nos países e nas classes mais ricas fatalmente haveria uma reação (backlash) da globalização gerada por seus perdedores. Era uma organização com integridade moral para dizer o que os poderosos não queriam. Infelizmente, não é o caso do FMI, muito controlado por essas grandes potências. O staff tem qualidade, mas, muitas vezes, é sufocado pelos diretores que representam os países. Agora, no rascunho do documento final do próximo encontro do G-7, americanos se insurgiram contra a repetição de uma frase sobre o perigo do aumento do protecionismo.
Qual é o risco?
O protecionismo é um perigo para a economia mundial, uma grande ameaça. A economia brasileira voltou a dar sinais de vida pelo aumento do comércio, é uma das poucas notícias positivas.
Como vai a nossa recuperação?
Os sinais positivos existem, mas são incipientes. Tivemos um retrocesso inédito em PIB per capita e nos distanciamos ainda mais dos países desenvolvidos. Aumentamos nosso índice de subdesenvolvimento. Paramos de cair e estamos começando a entrar no território positivo. É como alguém que está numa UTI depois de uma doença muito grave. A convalescença é lenta, no início não se tem energia para nada. O Brasil está nessa fase.
E o cenário político?
O sistema político continua com muita imprevisibilidade e instabilidade. É um futuro nebuloso. Pessoalmente, tenho dúvidas de que consiga sobreviver ao nível atual de crises econômica e política, agravado pelo problema ético da Lava-Jato. Há um esforço para levar avante reformas, como a da Previdência e trabalhista, mas por um governo com pouca popularidade e dificuldade de se comunicar com a opinião pública. A verdade é que as reformas precisam do apoio da população para vingarem. (...) Não vejo infelizmente nenhum sinal concreto de uma reforma profunda do sistema político, que cria cada vez mais danos. Comparo o sistema político ao câncer, que cresce por proliferação de células. No começo, é pequeno e se cura se for tratado, mas depois não. O sistema político brasileiro já chegou à metástase ou está próximo disso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário