- O Globo
O filme “No intenso agora”, de João Moreira Salles, é um elogio à nossa capacidade de sonhar, mesmo que esses sonhos fracassem sempre e acabem por nos angustiar
Os melhores cineastas modernos já demonstraram, na prática do que fizeram, que o filme documentário não precisa ser necessariamente isento, uma racionalização distanciada do assunto que tratamos sem compromisso preliminar. Ele é um gênero cinematográfico que não está mais condenado a esse rigoroso axioma crítico que vigorou até recentemente.
O filme documentário pode ser também uma carta de amor, a declaração de uma paixão que nós mesmos não compreendemos bem, não sabemos ou não queremos explicar. Um sentimento que está na origem da obra e do qual não podemos abrir mão. Um pouco como nesse magnífico “No intenso agora”, filme de João Moreira Salles que está na seleção do festival É Tudo Verdade, em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo, dedicado a documentários nacionais e internacionais.
O amor que esse filme proclama é o mais vasto e profundo possível, indo dos reveses da humanidade moderna, exemplificados na Primavera de Praga, no Maio de 68 e na instalação da ditadura no Brasil, até a tentativa angustiada de entender a própria mãe, em registros feitos no recesso do lar ou em longínqua viagem à China e ao Japão. Mas há também uma terceira paixão, disfarçada por trás da narração: o amor ao cinema, o desejo de ser fiel à sua reconstrução, a partir desse pressuposto de sentimentos. Como na sua inusitada e brilhante montagem.
Aparentemente, “No intenso agora” se apieda do destino dos derrotados em Praga, Paris e aqui. Uma piedade acentuada pela bela e competente trilha melodramática. Piedade que se nutre, muitas vezes, da própria voz autoral, ao mesmo tempo serena e calorosa, que nos narra pequenos acontecimentos de grande dramaticidade. Como o da cantora famosa que se aproxima de Dubcek como sua fã aflita. Ou o de estudantes patéticos, na porta da usina Wonder, tentando explicar a operários oportunistas o papel deles na sociedade. No fundo, os dois lados vivem as mesmas ilusões que os intelectuais da Sorbonne expressam antes e de modo mais sofisticado.
Em todas essas tragédias políticas da segunda metade do século XX, o único personagem realista talvez seja mesmo o então líder estudantil Daniel Cohn-Bendit, sempre rindo de tudo e de si mesmo, a declarar a certeza de que a revolução é um produto que nunca fica pronto de verdade, porque é impossível saber o que ainda está por vir.
Em contraponto à féerie revolucionária europeia em preto e branco, João Moreira Salles nos coloca diante da serena beleza em cores de uma China harmoniosa e sorridente, a China de Mao Tsé Tung e da Guarda Vermelha, cujos monumentos e paisagens é sua mãe quem filma. Ignorando a violência e a arbitrariedade por trás da Revolução Cultural, as imagens nos remetem a um mundo ideal onde, segundo as anotações da mãe que filma, meninas e meninos, a dançar por ruas e parques, têm os dedos mais finos e a pela mais suave que já se viu no mundo. É aí, nesse mundo ideal, que haveríamos de preferir viver, ao lado de uma mãe imaterial.
“No intenso agora” é uma angustiada saudação à humanidade, à sua fragilidade e à dificuldade de entendê-la. Uma celebração do ser humano partido e incompreensível, no coletivo e no particular (é tudo a mesma coisa). E, apesar de tudo, um elogio à nossa capacidade de sonhar, mesmo que esses sonhos fracassem sempre e acabem por nos
Já que estamos falando em cinema brasileiro, vamos lembrar que estrearam, nas salas do país, dois novos filmes que muito merecem ser vistos. Um tem o título bizarro de “Gostosas, lindas e sexies”. O outro busca a simples objetividade de seu título, “Joaquim”.
No primeiro, dirigido por Ernani Nunes, quatro mulheres, de gordinhas a gordonas, trabalham com sucesso em atividades típicas da grandeza de São Paulo e se divertem, na noite paulista, com os rapazes mais jovens, fofos e bonitos da cidade. Às vezes, o exagero pode ser uma virtude. No segundo, consagrado no festival de Berlim, o diretor Marcelo Gomes nos conta a vida pessoal do alferes Joaquim José da Silva Xavier, antes de ele se tornar o Tiradentes, nosso herói nacional, montando um retrato naturalista da formação social do país. A virtude pode ser um exagero. Às vezes.
São duas formas distintas de ver o Brasil nas telas. O Brasil que se diverte como é;e o Brasil como se tornou o que é. Não importa qual deles cada um de nós prefira ver. Esses dois filmes são uma celebração de nossa abençoada diversidade.
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Cacá Diegues é cineasta
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