- Valor Econômico
Luta de Temer para ficar pode sepultar as reformas
A declaração do presidente Michel Temer de que não irá renunciar, em tom de veemência inusual tratando-se de quem se trata, pode ser o primeiro lance de uma retirada, que ele tenta fazer de modo organizado. Temer se pronunciou, mas o cenário mais provável ainda é o do fim do seu governo a curto prazo. Ele já começou a trilhar o seu caminho para o passado do Brasil.
É crescente a percepção na opinião pública de que o presidente não tem a legitimidade do voto, não conta com sustentação nem entre os movimentos que trabalharam pelo impeachment, não possui mais condições morais de permanecer no cargo, depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou a abertura de inquérito por obstrução à Justiça. No empresariado, aumenta o sentimento de que a defesa de Temer e a continuidade das reformas são excludentes. A renúncia ou cassação de Temer pela Justiça tornou-se um imperativo. Mesmo sua base no Congresso começa a se desfazer, como mostraram ontem os movimentos do PPS e PSB. A queda de Temer é a única conclusão com sentido para a narrativa.
Para um advogado especialista em combate à corrupção, Modesto Carvalhosa, se antevê nas entrelinhas uma negociação para sair. "Ele está realmente em uma situação em que a perda do cargo seria o mergulho na primeira instância. Ele não tem mais sustentação e sabe disso", comentou minutos depois do pronunciamento.
No seu discurso, Temer deixa claro que a revelação da conversa com Joesley Batista, do grupo JBS, encerrou uma fase, a da "esperança de dias melhores", do tempo em que "o otimismo retornava e as reformas avançavam". Acena com o risco de não se retirar o país da recessão. Após negar que tenha tentado comprar o silêncio de Eduardo Cunha, promete se defender no Supremo e garante que não renunciará. Eis a nação diante da possibilidade clara de paralisia operacional, portanto. Mas Temer lembra que seu único compromisso é com o Brasil, e só isto o guiará.
Tramita no TSE um processo de cassação da chapa e está em discussão no Congresso e no Supremo os limites do foro privilegiado. São terrenos onde pode haver conversas.
No imediato pós-Temer, há um campo de batalha delimitado: os que advogam eleições diretas imediatas, caso de Marina Silva e Luiz Inácio Lula da Silva, e os que querem o seguimento do nebuloso rito constitucional, em que Rodrigo Maia assumirá o poder e o Congresso disciplinará como se dará a eleição indireta para o término do mandato.
O retrato atual da institucionalidade brasileira aponta para a hipótese argentina. Em 2001, De la Rúa, acuado por manifestações de rua, pela crise econômica e por um escândalo de compra de votos no Senado, saiu de helicóptero da Casa Rosada para o opróbrio. Não havia vice, os presidentes da Câmara e do Senado se sucederam rapidamente e foi eleito um biônico, para terminar o mandato. É verdade que no caso argentino o biônico se inviabilizou em seis dias e foi necessário o Congresso eleger outro presidente-tampão. O substituto conduziu uma claudicante administração por um ano e meio e venceu as eleições um presidente com características de outsider, mas dentro do sistema, em um partido tradicional.
O maior perigo desta possibilidade, de acordo com Carvalhosa, é o imenso grau de discricionaridade do Congresso, já que caberá ao Legislativo colocar a trave, posicionar o goleiro e dizer de onde se deve chutar a bola. Com Rodrigo Maia como presidente interino da República, a Câmara e o Senado poderiam elaborar regras suficientemente restritivas para direcionar a sucessão presidencial, alienando a sociedade organizada. Nesta hipótese, alguma parte que se sinta atingida pode fazer uma arguição ao Supremo de que o Congresso estaria descumprindo preceitos para garantir a escolha democrática do novo eleito. "Se a regulamentação for restritiva, como cidadão, estou disposto a questioná-la no STF", disse Carvalhosa. A judicialização do tema tornaria a eventual sucessão de Rodrigo Maia na presidência um drama institucional.
O caminho alternativo, o de eleições diretas antecipadas, é defendido por Luiz Inácio Lula da Silva e por Marina Silva, entre outros, e ganha ares de ruptura. Uma ruptura permite outras e o caminho está aberto para mudanças maiores, inclusive o de uma nova ordem constitucional.
Com os grandes conglomerados brasileiros alvos de buscas e apreensões, no sentido literal e figurado, com os tubarões do capitalismo de tornozeleira eletrônica, candidatos mais livres do vínculo direto com interesses empresariais organizados ganhariam mais possibilidades de sucesso. A ânsia por um candidato que represente a rejeição, muito mais do que a esperança ou um projeto concreto, tenderia a se expressar com força, em uma eleição suplementar este ano.
Será a hora dos radicais. Estarão dados os elementos para um fortalecimento da pretensão de Jair Bolsonaro. Mas também se fortalecem Ciro Gomes, pela contundência do discurso; e Marina, por ter sido a primeira política de expressão a apostar na falência do sistema partidário, ao se lançar candidata em 2010.
Lula será uma baliza. Ele provavelmente ficaria em primeiro lugar no primeiro turno na eleição presidencial deste ano e o turno suplementar seria um plebiscito sobre qual ódio ou qual medo prevaleceria no eleitorado brasileiro. Sua eventual vitória, acossado por processos, representaria um novo capítulo na história do populismo de corte bolivariano.
O sistema tradicional, com suas arquiteturas de poder no PSDB, no PMDB e na oposição, precisa de oxigênio para sobreviver e isto demanda tempo. O prefeito de São Paulo, João Doria, plano B do PSDB, é uma árvore que ainda não deu seus frutos. A plantação foi feita, mas a colheita depende de aguadas para acontecer. Doria se beneficia de recall recente, de não poder ter a sua administração avaliada por não haver o que avaliar, por hora. Mas está em um partido que carrega o estigma da danação. Não há tempo para desinfectar o partido da presença de Aécio. Qualquer tucano concorreria este ano em condições adversas.
Se prevalecer a solução argentina resta saber o que faria o interino que substitua Temer. O mais provável é que haja como o argentino Eduardo Duhalde, empenhado em preservar o sistema. A alternativa é tornar-se o demiurgo, o grande arquiteto. Mas não há um De Gaulle no Brasil que, ao ascender ao poder na França dentro do marco constitucional, recebeu plenos poderes, redigiu sozinho uma nova Constituição e foi legitimado por um referendo em que recebeu 78% dos votos. Falta um herói de guerra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário