- O Globo
Não estamos desistindo. Pelo contrário, estamos enfrentando aquilo que não gostamos de ser e não queremos ser
País enfrenta o que não quer mais ser. Nessa crise política, estamos assistindo ao fim dos heróis. Corretas ou não, a velocidade e a quantidade de informações que recebemos diariamente através dos jornais, da televisão e, sobretudo da internet, nos fazem senhores do conhecimento e, portanto, senhores de nós mesmos, desnecessitados de representação.
Nos livramos dos heróis, não precisamos mais deles. Mas tampouco percebemos como nos tornamos comandados, orientados pelo que nos dizem aquelas mídias, a transformar em pensamento próprio aquilo que elas nos revelam, como se nós mesmos tivéssemos criado todas aquelas noticias, ideias e conclusões, tudo aquilo. Nos tornamos um oráculo de nós mesmos a repetir, sem perceber, o que as redes sociais nos enfiam na cabeça.
Não sei se um dia conseguiremos pensar por conta própria, sem um ou mais desses poderes a nos conduzir por aí. Mas pelo menos já não precisamos mais de heróis, os seres onipotentes que não nos deixam pensar.
Se os heróis estão no fim, os bandidos ainda proliferam. Não temos mais apenas o líder do partido adversário a temer. O inimigo nem sempre é aquele que conhecemos e sabemos não estar de acordo conosco, mas o ser maligno de cuja maldade nem desconfiávamos. O bandido pode ser aquele cara simplório, capaz de devolver a propina ao juiz faltando R$ 35 mil que, pressionado, acaba por entregar na maior cara de pau.
Mesmo apanhados em flagrante e condenados, os bandidos amam, por exemplo, discutir como é injusto o valor de suas multas. Joesley Batista embarcou seu iate bilionário para Nova York, onde a família se instalou na Quinta Avenida. Mas acha que ele e seu irmão estão sendo explorados, com a multa de R$ 225 milhões para cada um, paga ao longo do tempo. Os irmãos Batista faturaram R$ 170 bilhões em 2016, mas acham um exagero e se negam a pagar os R$ 11 bilhões cobrados pelo acordo de leniência. A esperta dupla sertaneja da JBS havia comprado, por confissão deles mesmos, 1.829 homens públicos, entre membros de instituições, políticos e demais autoridades. Mas acham que, em contrapartida, já prestaram serviço demais à Justiça com aquela gravação no Jaburu.
Eles querem pagar multas menores. Mas que tamanho de multa pode compensar o fim (duvidoso) de nosso prazer em sermos brasileiros? A destruição (temporária) de nossos sonhos de construir um país menos escroto, menos desigual, com tanta gente dormindo nas ruas e assassinada nos campos? Um país livre do estigma secular da escravidão, que ainda persegue nossos pretos, pardos e pobres?
Outro dia, li Rodrigo Janot dizendo: “O país se cansou do engodo, da hipocrisia, dos voos de galinha da economia (...), de seguir para logo retroceder”.
Gostei dessa frase porque ela afirma que não estamos desistindo. Pelo contrário, estamos enfrentando aquilo que não gostamos de ser e não queremos ser. Reafirma aquilo pelo que estamos lutando, mesmo que meio tontos, na esperança das tais manhãs que cantam. No mundo inteiro, depois do choque inicial, já começa a se espalhar a desconfiança de que o Brasil está fazendo o que tantos países, como os próprios Estados Unidos, gostariam de fazer. Uma batalha radical contra a corrupção pública e pela criação de uma alternativa, um novo regime de reformas e representação que seja capaz de impedi-la. Até o popular programa americano “60 minutes”, da CBS, fez referência a isso recentemente.
No meio dessa podridão toda, estamos prestando um serviço pioneiro à humanidade, além de a nós mesmos. Estamos dando um exemplo de que como é possível desejar reconstruir um país a fundo, preservando a democracia.
Com a demissão de Roberto Freire assim que o bicho pegou, João Batista de Andrade, secretário-executivo de seu ministério, tornou-se ministro da Cultura interino. Cineasta e escritor, além de competente gestor público em São Paulo, João Batista à frente do MinC pode ser um presente que o acaso de uma crise política joga no colo de intelectuais e artistas brasileiros de diferentes áreas de criação.
Pela segunda vez em sua existência, o Ministério da Cultura está sendo comandado por um artista criador, alguém que sabe com o quê e para o quê está lidando. E nós sabemos do benefício que isso representou para a cultura brasileira, quando o titular era Gilberto Gil.
Nossos políticos de todos os lados precisam entender que a cultura é como a economia, um espaço decisivo para a formação da nação. Não importa sob que circunstância vai se encerrar a crise política (se é que ela se encerrará!), João Batista de Andrade efetivado como ministro da Cultura seria um sinal de respeito pela atividade. Nós merecemos.
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Cacá Diegues é cineasta
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