- O Globo
Ansioso por completar algumas orações de sua teoria sobre cultura miscigenada, o Fumante só conseguia dizer com dificuldade: ‘O Brasil é um país mestiço’
Gosto de fazer concentrado meus exercícios no calçadão da praia, sem me perder com o que se passa à minha volta. Quando o mundo real me desperta a atenção, é porque o que acontece é mesmo importante, me ensinará alguma coisa que vale a pena aprender.
Outro dia, dei uma parada num quiosque relativamente modesto, na altura do Jardim de Alah, ali onde corre para o mar aquele despejo de esgoto e sujeira que prefiro nem olhar. Minha intenção era apenas a de tomar uma água de coco gelada, como me aconselha sempre o doutor Fernando Portela. Mas não pude deixar de reparar nos três rapazes sentados numa das poucas mesas do quiosque, falando todos ao mesmo tempo. Cada um deles, em boa forma, devia ter um pouco mais ou menos de 65 anos de idade.
O único que não tinha um só fio de cabelo na cabeça narrava, mais alto que o necessário, uma aventura sentimental que não posso garantir ser atual ou um capítulo de suas memórias de juventude. “Mulher gosta é de desprezo”, dizia ele às gargalhadas. Um outro, com cara de professor de ensino médio, acompanhava a narração do Careca solidário à sua performance sexual, enquanto tentava repetir a manchete do jornal com as prisões dos corruptos do dia. O terceiro, em contraste com os trajes esportivos e os músculos que ostentava, fumava sem parar, procurando escapar dos gestos expansivos do Professor. Ansioso por completar algumas orações de sua teoria sobre cultura miscigenada, o Fumante só conseguia dizer com dificuldade: “O Brasil é um país mestiço”. Todos falavam ao mesmo tempo. A mesa do quiosque já estava parecendo salão de festa ginasial, quando uma moça se aproximou sorrindo, com o olho nos três amigos. Ela era morena, baixinha, mais magra que gorda, e usava saia curta, sapatos sociais sem salto, além de um casaquinho pesado pouco conveniente para uma manhã de sol como aquela, à beira-mar. Descansei o canudinho enfiado no coco, fingi estar atento à canção de Fernando e Sorocaba, cujo volume o dono do quiosque aumentara no rádio, e esperei falsamente distraído.
A moça sorridente pôs a mão direita sobre o ombro do Careca, descansou a bolsa enorme sobre a mesa e disse apenas “Oi”. Surpreendido, o Careca parou de falar no meio de uma frase mas não respondeu à saudação. Quem o fez, depois de alguns segundos de silêncio e desconforto geral, foi o Fumante: “Oi”.
A resposta foi suficiente para que a moça puxasse uma cadeira e sentasse à mesa. “Posso pedir uma cerveja?”, ela perguntou e não esperou pela resposta, fazendo sinal para o rapaz do quiosque, pedindo a garrafa que não custou a chegar. Os três amigos se entreolhavam sem saber o que fazer, enquanto a moça se deliciava com a bebida. Sempre sorrindo, ela passou a longa língua nos lábios molhados, encostou-se melhor na cadeira e disse: “Meu maridão me deixa eu namorar”.
Em silêncio, os três amigos estavam sem saber por que ângulo abordar a revelação. O primeiro a se manifestar foi o Professor: “A senhorita usou dois pronomes, ‘me’ e ‘eu’. Isso não pode...”. O Fumante interveio às pressas: “Mas, nesse caso, pode”. Os três não chegaram a manter um seminário sobre os pronomes, mas iniciaram um pequeno debate.
A moça os interrompeu, dessa vez meio sonhadora: “Meu maridão é um cara legal. Ele é um mulato forte, bem nutrido, que gosta de Roberto Carlos e torce pelo Flamengo”. Sob evidente e silenciosa reprovação do Professor e do Fumante, o Careca ansioso começou a cantar trêmulo e desafinado: “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo”.
“Meu nome é Maria Cecília. Mas todo mundo só me chama de Ciça”. Os três amigos sorriam sem graça, sem saber o que dizer. Com receio de cometer outra gafe, o Careca murmurou: “Bonito nome”. O Professor acrescentou: “Não tem uma santa com esse nome?”. E disse, por fim, o Fumante a acender mais um cigarro: “Não precisa, o Senhor já está bem representado por aqui”. E apontou para Ciça.
Antes de me retirar do quiosque devido ao adiantado da hora, ouvi mais uma confissão de Ciça: “Sou de Oxum. E vocês?”. “A senhorita é do candomblé?”, perguntou o Careca tentando uma prosódia de especialista. Ciça elevou a voz: “Se Martin Luther King fosse brasileiro, seria pai de santo, não é?”. Os três concordaram com entusiasmo. “Nós somos outra coisa”, disse ela, “a gente tem que se conformar com isso”.
Perguntei a mim mesmo onde Ciça havia encontrado aquela citação do antropólogo Antonio Risério. Ele e ela tinham razão, nós somos mesmo outra coisa. Deixei o quiosque devagar, ainda ouvi por algum tempo o hit de Fernando e Sorocaba no rádio: “Essa é minha menina, de boné para trás, de calça rasgada, (...) ela ama os bichos como ninguém e ajuda os velhos a subir no trem”. Ciça tem toda razão, precisamos começar tudo de novo, reinventar o Brasil.
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Cacá Diegues é cineasta
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