Marsílea Gombata | Valor Econômico
SANTIAGO - No domingo, os chilenos vão às urnas eleger um novo presidente em meio a um debate existencial sobre o modelo ultraliberal que vigora no Chile desde os anos 1980. Se por um lado ele sustentou um crescimento acima da média mundial, por outro gerou tensões sociais e pressões por mudanças.
Na plataforma dos candidatos, o ex-presidente Sebastián Piñera, de direita, foca em elevar o crescimento econômico, do atual 1,4% para os níveis anteriores, perto de 5%, sem ajustes que poderiam prejudicar esse crescimento. O candidato governista Alejandro Guillier, de centro-esquerda, fala em crescimento sustentável e promete continuar as reformas que marcaram o segundo mandato da presidente Michelle Bachelet.
Desde que assumiu o Palácio La Moneda para seu segundo mandato, em 2014, Bachelet levou adiante uma série de reformas com o objetivo de responder a um descontentamento crescente, expresso nas manifestações pela gratuidade dos ensinos secundário e superior em 2011 ou pelo fim da Previdência baseada em sistema de capitalização individual, administrada por gestores privados (as AFPs).
Em quatro anos, Bachelet aprovou reformas de educação, trabalhista e tributária, e encaminhou ao Congresso projeto para reformar a Previdência. Acabou com as escolas privadas mantidas com subsídios estatais no ensino secundário, fortaleceu as negociações mediadas por sindicatos e "legalizou" a greve, proibindo a contratação de substitutos para grevistas.
Ela aumentou de 20% para 27% o imposto de renda das empresas, apesar de ter reduzido a alíquota máxima para pessoa física de 40% para 35%. Na Previdência, propôs elevar a contribuição, dos atuais 10% para 15% do salário, sendo esses cinco pontos extras a cargo do empregador, para fortalecer as contas individuais e o fundo público, usado para complementar as aposentadorias mais baixas.
"Bachelet fez um segundo mandato bastante diferente do primeiro, que foi moderado e seguiu a linha da antiga [coalizão] Concertação, de Eduardo Frei e Ricardo Lagos", diz Manuel Melero, presidente da Câmara Nacional de Comércio e Turismo do Chile. De sua sala, no antigo casarão que abrigava a embaixada americana no bairro de Lastarria, ele avalia que Piñera substituiu Bachelet, em 2010, com um governo de orientação liberal que desagradou o chileno médio e evidenciou as suas necessidades.
"Havia crescimento econômico, mas as pessoas não sentiam que isso as ajudava a resolver seus problemas. Elas estavam trabalhando muito para pagar caro por saúde e educação", diz. "Bachelet olhou para isso, e Guillier promete continuar esse Estado de bem-estar social. Já Piñera crê que o melhor modo de o país crescer é dar espaço a atores privados, para que a confiança nas regras do jogo volte e possa gerar crescimento de novo."
Mudanças das "regras do jogo" são citadas por quase todos os empresários, que mostram irritação com as reformas de Bachelet. Eles atribuem o baixo crescimento médio dos últimos quatro anos - 1,8%, o pior desde a redemocratização - às reformas, que teriam minado a confiança do empresariado, que reduziu os investimentos, levando a um crescimento de 1,4% do PIB neste ano.
Esse empresariado não gostaria de ver como seria uma continuação do governo Bachelet, caso Guillier vença. "O Chile dos últimos quatro anos contrasta com o das últimas três décadas", reclama Álvaro Merino, gerente de estudos da Sociedade Nacional de Mineração (Sonami) do Chile. Isso [o crescimento menor] não é fruto do azar, mas resultado de políticas públicas. Estamos crescendo metade do que cresce o mundo, e acumulando quatro anos de queda de investimento, o que não acontecia desde os anos 1960."
O investimento de capital vem caindo desde 2014. A perspectiva é que encerre este ano com queda de 2,5%. No setor de mineração, por exemplo, o total investido passou de US$ 4,74 bilhões, em 2014, para US$ 2,63 bilhões no ano passado.
Merino não acredita que o Chile experimentará uma queda livre se Guillier vencer. Mas vê caminhos diferentes para o país com uma candidatura ou outra. "Será uma escolha entre crescermos a 2% ou a 5%. E isso faz toda a diferença."
É preciso olhar os dados de crescimento com cuidado, afirma Viviana Giacaman, cientista política do instituto Chile 21. "A coalizão de Guillier é a mesma que fez o Chile crescer 6%, 7%", diz, referindo-se a governos anteriores. Ela argumenta que o crescimento médio de 5,3% dos anos Piñera (2010-2013) esteve afinado com o de outros países da região, como Paraguai (7,5%) e Bolívia (5,3%). Mas em 2015, diz, o Chile cresceu 2,3%, e a América Latina, 0,1%. "No ano passado, crescemos 1,6%, e a região contraiu 1%. Neste ano, o país crescerá 1,4%, mais do que o 1,1% previsto para a América Latina."
Javier Hurtado, da Câmara Chilena de Construção, reclama da queda de 1,8% do investimento no setor e diz que o desempenho "a desejar" da economia chilena deve-se um terço à conjuntura internacional - o preço do cobre, que responde por quase metade das exportações, caiu de US$ 7,3 mil por tonelada, em 2013, para US$ 4,7 mil em 2015, e deve chegar a US$ 6,8 mil neste ano. "Os outros dois terços se devem a políticas públicas. Depois da reforma tributária, investir perdeu o sentido."
Apesar de sinais apontarem para um cenário positivo - o Indicador Mensal da Atividade Econômica (Imacec) subiu em novembro 2,9% em relação ao mês anterior - há desconfiança do empresariado. Em março de 2014, quando Bachelet assumiu, o Indicador Mensal de Confiança Empresarial (IMCE) marcava 51,8 pontos. O índice, feito pelo Instituto Chileno de Administração Racional de Empresas (Icare) e a Universidade Adolfo Ibañez, estava em novembro em 47 pontos. Esse é o pior nível de pessimismo desde 2003, numa sequência de 44 meses em patamar negativo. Índice acima de 50 pontos indica otimismo; abaixo, pessimismo.
Para Bernardo Larraín Matte, presidente da Sociedad de Fomento Fabril (Sofofa), mais do que o aumento do imposto para as empresas, a principal razão por trás da indisposição do empresariado com o governo Bachelet foi a eliminação do Fundo de Utilidades Tributárias (FUT), pelo qual os empresários investiam parte dos lucros sem pagar impostos. Bachelet deu fim ao fundo, criado em 1982, com a reforma de 2014, por considerá-lo foco de evasão fiscal.
"Com o FUT e o código tributário antigo, havia incentivos para investir. Hoje não", afirma Larraín, do 2º andar do Edifício da Indústria, em Las Condes, bairro que concentra escritórios de luxo em Santiago. "Há maior rigidez também no mercado trabalhista, diante de um mundo que pede cada vez mais flexibilidade." Para ele, o Estado deve ter um papel reduzido, de agente regulador, que deixe ao setor privado o papel de investir.
Ex-ministro da Fazenda de Augusto Pinochet, Rolf Lüders atribui ao modelo implementado durante o governo militar o "progresso" do Chile em relação aos outros países da região. "O Chile se modernizou muito nas últimas décadas devido às reformas orientadas a transformar a economia semicentralizada em uma economia social de mercado, em que o Estado tem um papel subsidiário", afirma. "Há setores do país, como Bachelet, para quem o país pode sacrificar o crescimento econômico para alcançar meio grau de igualdade na distribuição de renda. Se persistirem neste caminho, o país não terá um desenvolvimento pleno."
Lüders fez parte do grupo de estudantes de economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile que em 1956 foi estudar no Departamento de Economia da Universidade de Chicago, sob a tutela de Milton Friedman. Eles ficaram conhecidos os Chicago boys chilenos e formaram parte da equipe econômica de Pinochet.
Companheiro de classe de Lüders, Ricardo Ffrench-Davis é um Chicago boy dissidente e feroz crítico do modelo liberal do Chile. "Continuamos a repetir o que a ditadura nos ensinou: 'the market knows'. Mas o mercado não sabe, não sabe tripular", argumenta.
Para ele, Piñera e Guillier trazem visões distintas sobre o papel do Estado. "Na proposta de Piñera, o Estado é um agente passivo. No projeto de Guillier, não há um Estado gigante, mas capaz de conduzir o país ao desenvolvimento produtivo. Os economistas de Piñera creem que esse papel deve ser feito pelo mercado, mas o mercado não é capaz de fazer isso sozinho."
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