Com a Lei da Ficha Limpa, o voto torna-se menos livre e a justiça, menos isenta
Justitia, a figuração escultórica da justiça, surgiu na Roma Antiga e seus olhos ganharam uma venda na Berna do século 16. A venda assinala o ideal de imparcialidade em relação ao status social e, nas democracias modernas, também em relação à política. A tão celebrada Lei da Ficha Limpa ameaça removê-la, violando a separação entre justiça e política. O processo de Lula no TRF-4 lança luz sobre esse risco.
Lula é culpado? O veredito político, que cabe aos eleitores, só requer a constatação de que, na Presidência, ele coordenou (ou, no mínimo, facilitou) a captura do Estado –e, notadamente, da Petrobras –por máfias partidárias associadas a empresas privadas. Nesse plano, a crença na inocência de Lula exige um exercício hercúleo de hipocrisia ou um alheamento da realidade digno de mestres da arte zen.
Já a sentença judicial solicita uma coleção de provas exibidas segundo os cânones do Direito. Além disso, tal sentença submete-se a revisões judiciais e só se conclui na instância recursal derradeira. Nada haveria de aberrante na hipótese de Lula ser declarado culpado pelos eleitores, mas inocente pelos juízes. O contrário, porém, indicaria um avançado estágio de putrefação de nosso tecido social.
A Lei da Ficha Limpa nasceu de uma articulação de advogados e ONGs. Segundo a sua lógica implícita, só a tutela do Judiciário sobre os eleitores conseguiria reduzir os níveis de corrupção. Sua aprovação pelo Congresso e sanção presidencial (ironicamente, por Lula), em 2010, indicam que nossa elite política, acuada por sucessivos escândalos, renunciava à defesa do princípio da soberania popular. A passagem do tempo mostrou que corrupção e Ficha Limpa convivem em harmonia: o "petrolão", recorde-se, operou a todo vapor durante a sua vigência.
A Ficha Limpa sabota duplamente a separação entre justiça e política. De um lado, oferece estímulos vitais, existenciais, para os políticos estenderem sua influência no Judiciário, articulando pela nomeação de juízes amigos nos tribunais estaduais e nos tribunais federais regionais. De outro, confere aos magistrados o poder excepcional de configurar os quadros de candidatos às eleições municipais, estaduais e nacionais. Na "república dos juízes", o voto torna-se menos livre e a justiça, menos isenta.
O caso do tríplex do Guarujá mobiliza as paixões dos antilulistas profissionais, que enxergam a oportunidade para afastar o ex-presidente da disputa de 2018 e, no limite, enviá-lo à prisão. Simetricamente, ajusta-se aos propósitos gerais do PT, que vê a chance de popularizar o discurso da perseguição judicial, esvaziando a dura narrativa emanada das sentenças sobre o "mensalão" e o "petrolão". Contudo, para além das torrentes de insultos fabricadas nas trincheiras militantes, deveria servir a uma reflexão crítica sobre a Ficha Limpa.
Estamos dispostos a subordinar os direitos políticos do eleitorado de Lula a um veredito provisório de três juízes federais do Rio Grande do Sul, sobre o qual pesará a suspeita (fundada ou não) de atropelo dos prazos judiciais costumeiros? O caso do tríplex é a mais fraca das acusações contra Lula. Na sua convoluta sentença, Sergio Moro admitiu não possuir provas da contrapartida específica oferecida pelo então presidente à OAS. A transação, concluída ou esboçada, parece pertencer menos à esfera propriamente criminal e mais aos fétidos arranjos patrimonialistas tradicionais.
Os fins justificam os meios? Justitia deve perder sua venda em nome da política? O "mercado", que foi fanaticamente lulista até converter-se ao antilulismo, acha que sim. Putin e Maduro concordam, utilizando-se habitualmente do Judiciário para esculpir cenários eleitorais vantajosos. As democracias discordam. Nelas, só uma sentença definitiva exclui o condenado da arena eleitoral. O Brasil precisa escolher o seu lado.
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*Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'.
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