Não se deveria combater quem estimula Luciano Huck a sair candidato. É importante respeitar os argumentos de quem o patrocina. Não há porque vetar iniciativas políticas desse tipo, até por uma questão de princípio. Todos devem ter direito de propor nomes e articular candidaturas, lutando por elas se acaso nelas acreditarem de verdade.
Não há um oráculo para nos dizer o que é certo ou errado, o que dará ou não certo, quem tem ou não o direito de postular o cargo mais importante do país. Quem se vê como dono da verdade ou decifrador de enigmas não está entendendo o mundo atual. As verdades existem, sempre existirão, mas não caem do céu. Estão em disputa e podem ser acessadas mesmo por quem não tem a mente afiada dos deuses.
Também não hostilizo o Huck, que deve ter seus méritos. Acho uma bobagem extrema dizer que ele não pode ser candidato porque não passa de um “funcionário da Globo”, um mero “apresentador” que representaria os interesses mais profundos e escusos dessa organização. É uma acusação que só comprova os tempos intolerantes e de retórica autoritária em que vivemos. É ridículo, para dizer o mínimo, medir sua estatura política ou intelectual pelo programa de auditório que ele pilota há anos. Uma coisa é o cara no palco, outra na vida pública. Parte da esquerda age em nome da necessidade de apreender os nexos explosivos entre a economia e a política. Para ela, a posição no mercado remete imediatamente a uma posição na política. Se o pai ou o tio é banqueiro, o filho ou o sobrinho serão serviçais do capital financeiro. Fizeram isso com Marina em 2014. É a reiteração do mesmo dogmatismo que despreza a complexa dialética entre economia e política e que, aos trancos e barrancos, tem ajudado a empurrar o marxismo e o bom senso para a margem.
Não se sabe se ele será candidato mesmo. Dizem que está a pensar, consultando amigos e familiares. Algum movimento há, um certo vozerio. Pouco importa. O que importa é que Huck passou a ser cogitado, e algumas pessoas de peso o estão embalando, por motivos vários.
A ideia de que Huck pode ser o “sangue novo” que falta à política tradicional e que, por isso, poderia representar a alternativa de que carece o “centro democrático” ainda está, porém, para ser demonstrada. Novo de que tipo? Pela esquerda, pelo centro, pela direita, por sobre partidos, a partir de “movimentos cívicos”? Para ganhar uma eleição ou para dar um rumo ao país? Para não perder ou para ganhar? (Sim, são coisas diferentes).
Nomes novos, em política, não saem do bolso do colete de alguém dotado de visão superior. Nenhum caso foi assim: Collor em 89, Lula em 2002, Macron na França, todos surgiram a partir ou de uma construção complexa, ou foram a expressão de lideranças que de algum modo estavam na política. Devem ser construídos, como se fala, tijolo a tijolo.
Não existem novos “puros”. A ideia é abstrata e precisa ser traduzida. Especialmente quando embalada por articulações e desejos afirmados sem a devida maturação, sem aquele processamento indispensável para que se acerte o alvo, ou se chegue perto dele com um mínimo de autenticidade, massa crítica e base operacional. Quando isso não ocorre e a mola impulsionadora é tão-somente uma imagem, chega-se a aberrações tipo Trump e Berlusconi.
Nada contra os bastidores. Em boa medida, todos os nomes nascem de conchavos e negociações que rolam em camarins pouco acessíveis. Mas somente vencem aqueles que, dispondo de bons bastidores, demonstram ter resiliência e competitividade para chegar ao coração do povo e dobrar os adversários. É tudo óbvio, mas não custa lembrar.
A fonte propulsora de uma eventual candidatura de Huck parece ser a preguiça dos políticos democráticos de enfrentar a própria crise, de romper com a inoperância que ameaça corroê-los e inviabilizá-los.
Não se sabe o que pensa Huck, além da promessa de “renovar a política”. Seus patrocinadores nem sequer se preocupam em agregar qualidade programática ao nome dele. Não se trata de “programa de governo”, mas de ideias, pensamentos, sugestões, princípios-guia. Agem como se achassem que prestígio televisivo, boas intenções e apoio de algumas lideranças são suficientes para fazer um país. Não levam em conta que credibilidade não é extensão natural de popularidade. Dizem que suas proposições serão apresentadas no devido tempo e a partir de itens “autoevidentes”, impostos pela necessidade que o país teria de “renovação”. É mais uma desculpa que uma explicação. Um indicador da crise por que passa o PSDB, dentre outros. Poderiam agir para suprir essa lacuna, para frear o que há de “desconstrução” da imagem de Huck, que também é a “desconstrução” de uma alternativa de centro-esquerda, que agregue mais que divida e apresente uma proposição democrática e social.
Não há falta de nomes. O que há é uma enorme, angustiante e assustadora dificuldade para encontrar “o” nome, aquele para o qual possam confluir esforços e energias. O que há é falta de articulação.
Se Huck quer mesmo se colocar a serviço de uma causa — e não há motivos para que se duvide disso –, há muitos lugares disponíveis para tal empreendimento na política. Poderia começar do começo, amassando barro e sujando as mãos. Não precisaria fazer uma “carreira”, ser vereador, deputado, senador. Bastaria que mergulhasse na política, dominasse suas idiossincrasias, conhecesse seus atalhos e seu modus operandi. Despejado sobre a sociedade como descoberta “genial” de alguns morubixabas, poderá até vencer, mas não terá raízes em que se apoiar. Precisará ser tão assessorado e tão protegido que não conseguirá caminhar sem as muletas daqueles que o descobriram e patrocinaram. Seu poder, assim, não lhe pertencerá. Nem a ele, nem ao povo que o eleger.
Patrocinado por um dos polos do drama nosso de cada dia, ainda poderá ter por efeito encrespar o polo adversário, prolongando a polarização de que precisamos nos livrar.
Senões
Mas sempre há um senão. Ou vários.
Para que não deixemos de fora outros ângulos de observação e para que temperemos as certezas, os senões são preciosos. Funcionam como solventes de consensos fáceis. Podem ajudar a lubrificar as engrenagens da razão.
E se Luciano Huck emergir como candidato de um forte bloco de centro-esquerda, desses que reúnem os “melhores” de várias facções político-partidárias, mostram-se despojados de protagonismos extravagantes, de excessos retóricos e projetos pessoais, além de exibirem coragem cívica e destemor político?
E se trouxer nas mãos uma fornida cesta de ideias, valores e compromissos que se revelem factíveis para resgatar o país?
E se mostrar desenvoltura e postura ético-política superior no debate público que vier a se realizar?
E se seus patronos e incentivadores saírem dos bastidores com uma ação firme e concertada que ultrapasse vaidades e personalismos e se abra para um diálogo tipo olho no olho com a sociedade?
E se, enfim, a esquerda democrática, os liberais avançados, os conservadores civilizados, os católicos, protestantes, umbandistas e pentecostais do Oiapoque ao Chuí, intelectuais acadêmicos e gente da cultura, darem-se as mãos, substituírem as armas belicosas pelas as armas da razão crítica e pensarem mais no país que em seus próprios botões?
Nesse caso, tanto fará quem for eleito Presidente, pois terá nascido um novo Brasil.
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*Professor Titular de Teoria Política e Coordenador Científico do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais-NEAI, da UNESP, em São Paulo. Articulista do Estadão e tradutor.
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