A leitura mecânica da Carta leva a equívocos que só ajudam a manter impunes criminosos
Talvez se entenda a resistência à aplicação da norma do início de cumprimento de sentença na sua confirmação em segunda instância devido a pressões políticas ou mesmo a causas filosóficas. Nos debates já ocorridos no Supremo sobre o tema, chegou-se a citar a defesa dos direitos humanos universais como razão para se alongar ao máximo o início da prisão do condenado. Mas, se for assim, não se faz Justiça. Com todo o respeito à Filosofia.
É no mínimo estranho que em 1941, com a aprovação do Código de Processo Penal, o princípio tenha começado a ser seguido, e assim foi, sem reclamações, até 2009, quando o Supremo reviu a jurisprudência e estabeleceu o entendimento literal dos conceitos constitucionais do “transitado em julgado” — até o último recurso — e da “presunção da inocência”. Conjugados, os dois conceitos abriram larga avenida para a impunidade, principalmente de réus com patrimônio suficiente para contratar advogados competentes em explorar os incontáveis meandros da legislação para postergar o “transitado em julgado” até a prescrição dos crimes.
Não deve ser coincidência que a revisão da norma ocorra na primeira parte do bemvindo avanço de organismos de Estado sobre a criminalidade de colarinho branco, em especial os políticos. À época, o mensalão do PT frequentava o noticiário como grande novidade. Pois não se tinha notícia, antes, de políticos poderosos serem investigados. Não só o foram, como alguns terminaram presos por corrupção.
À medida que o combate à corrupção avançava, tendo sido lançada a Lava-Jato em março de 2014, ficava evidente que também o conceito amplo demais do foro privilegiado funcionava como incentivo à impunidade. É prova sólida disso estudo feito pela faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas segundo o qual, entre 2011 e 2016, das 404 ações penais concluídas pelo STF no período, 68%, ou 276, prescreveram ou foram para instâncias inferiores, devido à saída da autoridade do cargo. A recente mudança da aplicação do foro para deputados e senadores, por proposta do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo — formulada na relatoria de um caso de gangorra de foro, que levou à impunidade do denunciado —, tem, portanto, importância visceral: são agora cobertos pelo foro apenas crimes cometidos no cargo e em função dele. Muitos, portanto, irão para a primeira instância, reduzindo a carga de trabalho das Cortes superiores, como o STF. Acaba, ainda, a gangorra de subida e descida de processos, nas trocas de cargo do acusado, outro fator de ajuda à impunidade.
Prisão em segundo grau, como vigorou de 1941 a 2009, tendo voltado a ser aplicada em 2016, conjugada com a revisão do foro, constitui reforma essencial para o Estado fazer frente ao crescimento da corrupção e da criminalidade em geral. A interpretação mecânica de partes isoladas da Constituição é um erro.
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