quinta-feira, 14 de junho de 2018

O reencontro da política com o futebol: Editorial O Globo

Político tem o reflexo condicionado de se aproximar de tudo que é popular. Mas o esporte consegue pairar acima disso e também vencer paixões ideológicas

Hoje começa o encontro marcado para cada quatro anos entre o brasileiro e a Copa do Mundo. Nem todos amam o futebol, mas a parcela dos aficionados é grande, entre eles os que se ligam no esporte só durante o torneio, que, na era da comunicação instantânea no planeta, é um dos eventos esportivos que mais atraem a atenção de terráqueos.

A Seleção, assim, com “s” maiúsculo, é sinônimo de país, a “pátria de chuteiras”, termo de Nelson Rodrigues, dramaturgo, jornalista, cronista dos mais apaixonados pelo futebol que não poupou talento para falar da “Seleção canarinho", do seu Fluminense e de outros times também. No universo da bola, nunca foi sectário.

Os mundos do futebol e da política são contíguos. Afinal, político tem o reflexo condicionado de se aproximar de tudo que é popular. Sempre pode resultar em voto. Mas o futebol tem conseguido, felizmente, pairar acima disso.

Passou por um grande teste na ditadura militar de 64, em cujo ciclo foi conquistado o tricampeonato, em 1970, pelo time de Pelé, Tostão, Rivelino e outros, um dos mais fortes que participaram do torneio desde a primeira disputa, em 1930.

Por inevitável, os militares se aproximaram da Seleção. O presidente, general gaúcho Emílio Garrastazu Medici, gremista no Sul, rubro-negro no Rio, cultivava a imagem de assistir a jogos da tribuna de honra do Maracanã com um rádio de pilha colado ao ouvido. Não resistiu, interveio na delegação, depois de brilhante classificação sob o comando de João Saldanha, filiado de carteirinha ao PCB, para impor seu centroavante predileto, Dario “Maravilha”, e assim forçou a saída do jornalista e técnico. Zagalo assumiu e veio o Tri de qualquer forma.

Os ingredientes eram adequados para opositores do regime torcerem contra a Seleção, vista por alguns como símbolo da ditadura. Ela, de fato, tentou se apropriar da conquista. Houve defesa de boicote, mas bastou Rivelino fazer o primeiro gol da “Canarinho” na Copa, o do empate contra a Tchecoslováquia, partida vencida por 3 a 1, para o mau humor militante contra o time se dissipar. Ou pelo menos ficar restrito a um grupo. Há relatos de quem militava na luta armada de como a torcida pelo time superou o ardor político e ideológico.

Começa nova Copa, 48 anos depois, num clima de radicalizações, intolerância e patrulhas. Nada comparável, ainda bem, à atmosfera de medo do tempo da ditadura militar. Mas ódios e sectarismos, e não apenas na política, se aproveitam das facilidades digitais para espalhar agressões, à direita e à esquerda. Incluindo temas sociais, comportamentais: racismo (ataques também de parte à parte), misoginia, feminismo, machismo, homofobia etc.

A Seleção entra em campo no domingo. Repete-se, em outra dimensão, o teste de 70: mal-humorados, como os que hoje confundem a cor amarela com partidarismo e ideologia, podem ficar amuados pelos cantos. Convém observá-los nos gols do Brasil.

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