- O Globo
Através da produção cinematográfica, uma de suas mais poderosas armas, EUA vendem ao mundo seus produtos
O que será que anda acontecendo? O presidente do BNDES, Dyogo Oliveira, comunicou que pretende acabar com o Departamento de Economia da Cultura do banco, no mesmo instante em que o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, muito acertadamente, anuncia os valores econômicos dela, com sua parte na oferta de empregos, no pagamento de impostos em valores maiores do que aqueles que o Estado oferece como incentivo à atividade, em sua participação no PIB, na multiplicação dessa indústria cada vez mais ativa e crescente.
A cultura é o espírito da nação, o valor simbólico que a mantém una, que a faz existir. Ela não é só responsável por produtos de cinema, música, televisão, literatura, artes plásticas etc., como também pelos costumes de um povo, os hábitos da população que se desenvolvem ao longo do tempo.
A cultura moderna ganhou um caráter econômico. Sobretudo nos países que fazem dela um soft power, instrumento de influência através do consumo global. Países como os Estados Unidos exercem seu poder internacional graças ao poder de sua cultura espalhada pelas nações de todos os continentes. Através da produção cinematográfica, uma de suas mais poderosas armas, os americanos vendem ao mundo seus produtos, desde geladeira e automóvel até a própria forma de viver.
Abandonar esse poder da cultura como exclusivo dos outros é abrir mão do que nós somos, é desistir de ser.
Hoje, nenhuma cultura sobrevive apenas pela força da imaginação, pela criatividade de seus produtores. Os meios de informação e comunicação do mundo contemporâneo agem muito rapidamente sobre as relações entre o produto e o consumidor, obrigam a uma renovação constante, que acaba criando novas e dinâmicas circunstâncias econômicas. Se o produtor não se der conta disso, é obrigado a sair de cena. O Estado, em todos os países do mundo, em diferentes medidas, se ocupa dessas novas relações econômicas, protegendo e animando a produção cultural local. É assim dos Estados Unidos à China, da Guatemala ao Mali. Como deve ser no Brasil.
Nosso ministro da Cultura sempre entendeu esse ponto e desenvolve um trabalho permanente nessa direção. Por que o BNDES não o acompanha? Por que o BNDES quer agora tratar a cultura como uma produção secundária na economia brasileira? E se isso tudo for uma tendência pré-eleitoral malsã? Como evitaremos mais essa trágica grossura no horizonte político do país?
Um horizonte que talvez não esteja tão longe assim. Semana passada, a Ancine (Agência Nacional do Cinema) informou que o premiadíssimo curta-metragem de um jovem cineasta mineiro, Sávio Leite, “A fadinha lésbica”, animação baseada em conto da consagrada autora Hilda Hilst, teve negado seu Certificado de Produto Brasileiro (CPB), sem o qual não pode ser exibido no país. A Ancine declara formalmente que nega o CPB “pois a obra foi considerada como subtipo (?) Erótico/Ponográfica”. Uma censura que nossa Constituição de 1988 proíbe e que tenho certeza de que não é uma orientação do ministro da Cultura.
Ao lado de Gustavo Dahl, Luiz Carlos Barreto, Luiz Severiano Ribeiro e Rodrigo Saturnino Braga, como representantes da atividade, fiz parte do grupo que, no final do governo FHC, elaborou a nova ordenação do cinema brasileiro, que tinha sido destruído por Fernando Collor.
Fomos nós que inventamos a Ancine, e não era para censurar que ela devia existir, mas para colaborar com o crescimento do cinema brasileiro, torná-lo sólido como economia. Os dois governos Lula respeitaram isso, Dilma também, assim como Temer desde o início do seu mandato. Agora, em vez de apoio, a Ancine resolveu decidir que filmes podem ou não ser feitos no Brasil.
“A fadinha lésbica” já foi exibido e/ou premiado em Berlim, Barcelona, Viena, Turim, Annecy, San Francisco, Bogotá, Cidade do México, Zagreb, Santiago, Sicília, Buenos Aires, Seul, Paris, Lisboa, Hamburgo, Oslo, Zurique, Londres, Lima, Hong Kong, Havana, Melbourne, Bruxelas, Bilbao, Varsóvia, Kosovo, Los Angeles, Moscou. Além disso, em 2018, para complicar a vida dos funcionários da Ancine, “A fadinha lésbica” já é finalista ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.
É incrível como um grupo de seres humanos, como qualquer um de nós, ainda se acha no direito de dizer o que está certo ou errado, o que é permitido ou não na obra de outras pessoas. Foi isso o que aconteceu, nas vésperas das eleições dos anos 1920 e 30, na Itália e na Alemanha.
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