- O Globo
Se é verdade que países não quebram, também é verdadeiro que podem perder sua oportunidade histórica, serem ultrapassados ou estagnados
Ninguém deseja naturalmente a austeridade. Ela não tem sedução quando comparada ao prazer que o dispêndio proporciona. Quando o gasto é feito com recursos públicos, então, é irresistível. Esquece-se que a origem da palavra República é res publica, que significa “coisa do povo” ou “coisa pública”. Adolph Wagner, financista alemão da segunda metade do século XIX, já havia detectado que a trajetória crescente da atividade pública deveria ser financiada por arrecadações fiscais. O ex-presidente Ronald Reagan diria depois que “cada nova receita arranja logo uma despesa”.
Somos mais criativos. Estamos criando novas despesas mesmo sem ter ainda as receitas. O país está imbuído de uma revolta contra a matemática. Pendura gastos e mais gastos para o próximo governo que, seja ele qual for, será também de todos nós. Talvez a agonia de um governo sem legitimidade, nos seus estertores, tenha facilitado essa insurreição contra a realidade, esse flerte com o abismo.
Cada setor forte e organizado pendura sua conta. Os caminhoneiros já tinham conseguido inúmeras vantagens econômicas depois de uma greve que desarrumou o transporte de carga e bagunçou a economia. Curiosamente, constatamos que até hoje a promessa de punir os grupos econômicos que comandaram a greve ficou esquecida. Agora, o Poder Judiciário espeta a possibilidade de uma conta adicional de R$ 4,5 bilhões, segundo a consultoria de Orçamento do Senado que leva em conta o efeito cascata da proposta de aumento do STF para toda a máquina pública. O déficit previdenciário do INSS em 2017 é de R$ 268,79 bilhões. Há um novo Refis das dívidas rurais a caminho...
Os setores corporativos e patrimonialistas do Estado mantêm seus privilégios através de um conjunto de desonerações e subsídios. O conjunto de isenções fiscais consolidadas drena parte expressiva do Orçamento. O tributarista francês Maurice Duverger já ensinou que “o contribuinte escapa pela sonegação, enquanto os grupos de pressão, pelas leis”. A Zona Franca de Manaus, por exemplo, assegura os seus privilégios desde a promulgação da Constituição de 1988 sem qualquer filtro acurado de seus resultados efetivos, mesmo abrigando empresas reais e outras de ficção.
Ao contrário das empresas privadas e das pessoas físicas que quebram, países podem sempre emitir moeda e empurrar as coisas para a frente. Assim, consolidam-se déficits. O problema é que fica tudo mais caro e difícil para o país endividado. O nosso já corresponde a 4% do PIB, contra uma média de 2,4% nos demais países da América Latina e do Caribe. A relação dívida/PIB é de 70%, contra uma média de 57,6% nesse conjunto de nações.
Os candidatos que podem chegar ao Palácio do Planalto sabem que terão que enfrentar o déficit. Já existem alguns consensos na receita. A ideia de se tributar os dividendos, se conjugada com uma redução da tributação da pessoa jurídica, não é ruim e acompanha um pouco o que se faz ao redor do mundo. Dentro da linha de maior tributação da camada mais rica, há a tributação dos fundos de investimento fechados, que só não passou porque o governo não tem mais influência sobre o Congresso.
Seria importante, entretanto, que o ajuste se desse não apenas pelo aumento das receitas que se encontram saturadas, mas também na ponta das despesas correntes. Há uma enorme deturpação na estrutura do nosso gasto público. Zonas de privilégio injustificáveis que se consolidaram legalmente, mas que precisam ser desmontadas. No caso do Legislativo e do Judiciário, por serem os poderes que fazem as leis e que as julgam, a luta é mais complexa. Existem aumentos que geram outros reajustes imediatos, como é o do STF, que precisam ser desatrelados. Só um governo forte e legítimo pode conduzir essa refundação de ideias.
A matéria fiscal não é sedutora. Como professor de Direito, vi como é difícil atrair a atenção das pessoas para temas fiscais, mas, mesmo assim, a equação do nosso déficit é central, inadiável. Se é verdade que países não quebram, também é verdadeiro que podem perder sua oportunidade histórica, serem ultrapassados ou estagnados. O economista W.W. Rostow, do MIT, em estudo clássico, descreveu como as grandes nações marcharam para a maturidade. Temos um país continental, rico em matérias-primas, uma economia de pauta diversificada, um agronegócio potente, ou seja tudo para expandir o nosso comércio exterior. Possuímos todos os componentes humanos necessários para sermos não só um grande país, mas também uma grande nação. Falta avançar.
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Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura
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