Por Ricardo Lessa | Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
As instituições democráticas levam algum tempo para serem construídas, mas podem ser destruídas muito rapidamente
SÃO PAULO - Mesmo no hemisfério Norte, a quase 7.000 km de Brasília, é possível captar os sinais da polarização do cenário eleitoral brasileiro. O centro de estudos latino-americanos da Universidade Harvard, em Cambridge, área metropolitana de Boston, tem sido um lugar privilegiado de observação. Os principais políticos e integrantes do Judiciário, como Sérgio Moro, têm sido convidados para dar palestras por lá, ao lado de empresários e ídolos pop, como Anitta, e lideranças de movimentos populares, como o criador da Central Única das Favelas, Celso Athayde.
Com um grande número de alunos e professores brasileiros, e todos os recursos mais modernos de informação, os acadêmicos de Harvard mantêm radares sintonizados para acompanhar o que ocorre no hemisfério Sul. Nada substitui, porém, a presença ao vivo e o contato face a face.
Um dos autores de "Como as Democracias Morrem", cuja tradução para o português será lançada pela Zahar no próximo mês, Steven Levitsky, de 50 anos, já havia visitado todos os países da América Latina, fora o Paraguai e o Brasil. Segundo ele, no caso brasileiro, por dificuldades com a língua portuguesa. Nesse cenário, nada melhor do que um bacalhau à lagareira para apurar a língua neste "À Mesa com o Valor", que ocorre em um restaurante de tradição lusa: o Bela Sintra, na região dos Jardins, em São Paulo.
Não que o bacalhau, ou "codfish" no idioma de Levitsky, fosse estranho a esse estudioso de assuntos com profundas raízes ibéricas. Mesmo nas proximidades de seu local de trabalho, em Boston, há uma grande colônia de pescadores portugueses, com origens antigas, datada dos primórdios da colonização, quando os cardumes de bacalhau abundavam na costa da América do Norte. Não à toa, os peregrinos ingleses que chegaram por lá chamaram de Cape Cod o primeiro lugar onde montaram acampamento.
O bacalhau anda raro na costa americana, e as famílias dos pescadores lusitanos estão sendo substituídas por uma onda cada vez maior de brasileiros, em sua maioria mineiros, concentradamente os provenientes de Governador Valadares. Cada crise brasileira corresponde uma nova leva de imigrantes que se lançam na pescaria por oportunidades nos Estados Unidos.
Pouco antes desta entrevista, Levitsky havia tido um encontro fechado com 15 dos mais conhecidos homens de negócios de São Paulo, que concentram boa parte do PIB brasileiro. Constatou que se mostraram pouco inclinados a aceitar sua tese: é melhor se juntar ao adversário político para evitar uma aventura autoritária do que se deixar seduzir por um candidato que apresenta todas as características de um político com tendências ditatoriais.
"Nenhum dos empresários com quem conversei gosta especialmente de [Jair] Bolsonaro [PSL], mas, questionados se num segundo turno a opção fosse entre o [eventual] candidato Fernando Haddad, do PT, e Bolsonaro, eles ficariam com Bolsonaro", afirma. "Para quem não é brasileiro, mas deseja a democracia e acredita nela, é realmente preocupante."
Em sua primeira passagem pelo Brasil, o professor se surpreendeu com a visceral rejeição de empresários e de alguns professores com quem manteve contato ao PT e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Lembrou-me o ódio dos empresários venezuelanos ao [presidente] Nicolás Maduro."
Todas as conversas que teve em São Paulo foram suficientes para surpreendê-lo com relação ao tenso ambiente eleitoral, afirma. "Já sabia que o clima político estava bastante polarizado, mas não achava que era o tanto que estou observando. Tanto quanto nos Estados Unidos. Os atores e os assuntos são diferentes, mas a polarização é similar."
Assim como no Brasil, diz Levitsky, a classe política anda muito desacreditada nos Estados Unidos. As pessoas não confiam nos políticos, e o nível de aprovação do Congresso americano pela população está no chão. "Os eleitores tampouco confiam no Judiciário e na imprensa." Uma das instituições em que os americanos confiam, segundo o professor, são as Forças Armadas, como no Brasil. "Mas é diferente por lá porque não temos uma longa história de golpismo nos Estados Unidos. Nunca aconteceu. O tipo de ameaça, portanto, é distinta."
Nos Estados Unidos também há número expressivo de ex-militares, veteranos da Guerra do Iraque, que são candidatos nas eleições legislativas deste ano por ambos os partidos. "Há uma grande simpatia popular pelos que lutaram na guerra", afirma. "Mas eles não são, em maioria, tão extremistas como os daqui do Brasil."
Ele já sabia que a polarização no Brasil era grande, admite, mas a animosidade da centro-direita contra a esquerda é maior do que previa. "Francamente não esperava. Alguns empresários com que conversei consideram [Jair] Bolsonaro [PSL] um político muito talentoso e mesmo um dos mais convincentes e eficientes oradores do Brasil fora Lula. Isso me deixou horrorizado", confessa Levitsky. "Eles acreditam que ele é um político eficiente, o que não é o caso de [Donald] Trump nos Estados Unidos."
Casado com uma jornalista peruana, que fala português, Levitsky aprovou o prato de bacalhau do Bela Sintra: "Esse modo de preparo eu não conhecia". A posta do peixe, com lâminas brancas suculentas, que escorregavam no garfo, estava num grande dia. Envolta num fino empanado e coberta por farta camada de cebolas caramelizadas e alho frito, proporcionava um belo espetáculo visual e gustativo.
Embora aprecie peixes e frutos do mar, que costuma degustar ao lado da mulher e da filha de 14 anos, o professor observa que o hábito americano é mais voltado para o consumo de carne bovina.
Como um concentrado "scholar" de Harvard em missão de trabalho, embora apreciando seu prato, ele não desviou o foco de seu papel de entrevistado. Vinho branco português? Um gole ao fim da refeição, para não atrapalhar o próximo compromisso, com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e alguns convidados.
No encontro seguinte, no Instituto FHC, ele parece ter encontrado mais eco para seus alertas. O ex-presidente já declarou que não rejeita uma aliança entre seu partido, PSDB, e o de Lula, num segundo turno eleitoral, caso o objetivo seja derrotar o candidato do PSL. Em muitos países, lembra Levitsky, os eleitores parecem ter falhado em identificar a consequência de seus votos, que acabariam por levar seus países para uma ditadura. Adolf Hitler e Benito Mussolini foram eleitos. Assim como Alberto Fujimori, no Peru, e Recep Tayyip Erdogan, na Turquia.
Para facilitar a identificação de um futuro ditador pelos eleitores, Levitsky desenvolveu, com Daniel Zyblat, coautor do livro "Como as Democracias Morrem", um teste de quatro itens capaz de denunciar um líder político como potencial ditador: demonstra desrespeito pelas regras democráticas; tende a demonizar o adversário político; apoia as soluções violentas e, declaradamente ou não, pretende restringir as liberdades no país, especialmente a de imprensa.
O candidato do PSL, segundo ele, marca positivo em todos os quatro itens. Nenhum outro, no Brasil ou em outros países latino-americanos, é tão abertamente antidemocrático, "mais do que [o presidente] Hugo Chávez, quando foi eleito na Venezuela, ou Fujimori no Peru", compara. "É bom prestar atenção no que eles falam, porque tendem a cumprir suas promessas."
A simpatia de empresários pelos homens de armas trazem à memória a fábula da aliança do cavalo com o caçador, que abre o livro da dupla Levitsky e Zyblatt. Para espantar a rena que comia seu pasto, o cavalo pede ajuda ao caçador, que espertamente aceita, com a condição de que o quadrúpede se deixar encilhar. Espantada a rena, o cavalo agradece e pede que o caçador desmonte. Mais poderoso em cima da montaria, o caçador se nega, deixando o cavalo sem alternativa, senão obedecer eternamente.
Após o golpe civil-militar de 1964, a história do Brasil mostra o que ocorreu a alguns dos aliados civis de primeira hora que apoiaram os militares. O caso mais emblemático talvez seja o do então governador Carlos Lacerda (1914-1977), que foi com uma metralhadora para frente do Palácio Laranjeiras apoiar o movimento militar. Quatro anos depois foi preso e cassado pelos ex-aliados.
Para o professor de Harvard, a ascensão de Donald Trump e sua prática de desprezo às instituições democráticas era impensável há poucos anos. Não que a democracia dos EUA esteja em risco iminente, ressalva, mas os riscos aumentaram de forma significativa.
A longevidade da mais antiga república do mundo importa. Em todos países que estudou, uma constatação é comum: quanto mais longa a tradição democrática, mais difícil que ela retroceda. O fenômeno atual da ascensão de governos autoritários que chegaram ao poder por via eleitoral se dá principalmente em países onde a democracia é mais jovem.
Há alguns meses antes de vir ao Brasil, Levitsky se mostrava mais otimista em relação ao país. Tinha confiança em que os três grandes pilares da democracia, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo, estariam mais sólidos. Mas não foi bem isso que observou por aqui. Por todos os locais onde passou, em agosto, o professor repetiu sua pregação antiautoritária.
Para alguns cientistas políticos brasileiros, há um pouco de alarmismo, já que Trump conseguiu dominar um dos grandes partidos americanos, o Republicano, para ganhar a Presidência, diferentemente do candidato mais identificado com o autoritarismo, que tem somente o apoio de um pequeno partido com pouca base no Congresso. Para esses críticos, alguns outros sinais em países da América Latina apontam para a reversão de alguns regimes identificados com o autoritarismo para governos mais democráticos, pela via eleitoral como ocorreu no Equador. Além da recente mudança na Constituição em Cuba.
Outra diferença entre Brasil e EUA é que Trump é mais outsider do que as candidaturas que lideram as pesquisas de intenção de voto, já que sempre foi um homem de negócios. "Mais amador num certo sentido", observa o professor, "enquanto Bolsonaro é um político experimentado com 28 anos de mandatos sucessivos".
Levitsky viveu a surpresa da eleição de Trump, desconsiderada pelas principais publicações e institutos de pesquisa dos Estados Unidos até a véspera da votação: "As instituições democráticas levam tempo para serem construídas, mas podem ser destruídas rapidamente", afirma.
Seus estudos, que tiveram a ascensão de Trump como maior inspiração, mostram que as regras democráticas, como o equilíbrio entre Poderes, o respeito às regras e a tolerância com os adversários não devem ser tomadas como certas e garantidas. Precisam, sim, ser reforçadas e continuamente cuidadas.
As diversas atrações culinárias portugueses não distraem o professor de suas afirmações. Entre uma e outra garfada no crocante bacalhau, ele observa as mesas do restaurante, que às 13h já estão quase todas ocupadas. Há apenas um homem não caucasiano. "Essa seria a cena de um restaurante chique de Nova York há 30 anos. Hoje em dia haveria algumas mesas com casais de negros. As políticas afirmativas e as lutas pelos direitos civis nos EUA deram resultados objetivos", afirma.
Levitsky ouviu a declaração de Bolsonaro de que "os portugueses nunca puseram o pé na África", e que os negros é que promoveram a escravidão. "É como Trump. Não importa o fato objetivo, mas o que causa sensação."
O professor é mais baixo e tem a pele mais morena que o estereótipo do americano a que estamos acostumados. O cabelo cortado curto e o blaser largo, descombinando com a calça e uma gravata larga, modelo "não-estou-nem-aí-pra-isso", já compõem mais o perfil dos professores universitários das escolas americanas.
Para ele, se o Brasil escolher o caminho autoritário, a tendência é de contágio para os países vizinhos, como ocorreu em 1964, com o golpe civil-militar. No momento atual, diz o professor, não se pode esperar dos Estados Unidos nenhum apoio para a manutenção das democracias no mundo. Os exemplos de governos autoritários se multiplicam em todos os continentes, de Rodrigo Duterte (Filipinas) a Maduro (Venezuela), passando por Erdogan (Turquia), Viktor Orban (Hungria) e Andrezj Duda (Polônia).
O professor considera o presidente russo, Vladimir Putin, como um caso à parte, já que nunca houve uma democracia realmente por lá. Coincidentemente, os países que integraram a antiga Cortina de Ferro, como Polônia e Hungria, estariam comemorando no ano que vem 30 anos de democracia, aniversário que no Brasil lembraríamos da primeira eleição direta.
Levitsky também considera que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff não foi golpe. Para ele, faz parte do que chama, em inglês, de jogar "hardball", (beisebol com bola mais pesada, que pode ser traduzido por pegar pesado ou jogar sujo) no Congresso e na Justiça. Foi verificado em outros países onde o autoritarismo foi ganhando espaço sutilmente, dentro de regras aparentemente democráticas.
Um exemplo típico desse jogo de "hardball" é o que ocorreu no Paraguai, em 2012, quando o então presidente eleito Fernando Lugo foi deposto em apenas dois dias com as aprovações do Congresso e da Suprema Corte do país. Tudo é feito dentro das regras, mas com uma leitura que favorece uma interpretação mais rígida e que interessa a uma vertente mais autoritária.
Os golpes de Estado, como costumavam acontecer, com tanques na rua e militares armados, segundo ele, não estão mais na moda. Agora o que ocorre é o que chama de autoritarismo competitivo: os autoritários chegam ao poder pelo voto e manipulam as instituições democráticas para servirem a seus interesses ditatoriais, como ampliação e cortes nas Cortes superiores de Justiça, fraudes ou manipulação dos resultados eleitorais e prisão e perseguição de integrantes do Legislativo e da mídia de oposição.
O combate à corrupção que, em alguns momentos, é citado como justificativa para apoiar líderes autoritários, para Levitsky, não pode ser visto como fenômeno exclusivamente brasileiro: "A corrupção não é estranha aos regimes democráticos mais consolidados como Inglaterra, França e Estados Unidos".
Ele lembra os anos 1850-1860 nos Estados Unidos, antes e depois da Guerra Civil, quando escândalos envolveram políticos, o prefeito de Nova York foi preso e houve episódios de compra de parlamentares. Escândalos também abundaram na Inglaterra no início do século XIX. "Só que as pessoas não sabiam do que se passava, porque não tinha rádio ou televisão na época, e a maioria do povo vivia no campo, alheia a esses assuntos", afirma.
Outro ponto em comum, diz Levitsky, é que no período da Guerra Civil dos Estados Unidos houve uma polarização sem precedentes entre os partidos políticos, a ponto de um professor contar 125 brigas no chão do Congresso, incluindo confrontos físicos e mesmo ataques com facas e revólveres. Naquele momento os políticos não se tratavam como adversários, mas como inimigos políticos. Foi um período de corrupção e violência e o pior momento da democracia americana
A lição mais ampla que tiramos do livro, acrescenta o professor, é que a polarização extrema pode destruir a democracia, não só nos Estados Unidos, mas na Espanha nos anos 1930 (que levaram à Guerra Civil) ou no Chile nos anos 70 (que levaram à deposição de Salvador Allende).
Esses momentos é que favorecem o aparecimento de líderes que fazem falsas promessas. Mas raramente, alerta o professor de Harvard, os novos ditadores entregam o que prometem em termos de lisura, desenvolvimento econômico e modernização do Estado, mostram seus estudos. Melhor exemplo é o colapso atual da Turquia de Erdogan. No entanto, o emprego da violência por eles é garantido, primeiro contra os inimigos políticos, depois contra todos que se opuserem à sua perpetuação no poder.
Para ele, o cenário político do Brasil se parece com o americano dos tempos atuais e com o de muitos países onde líderes autoritários foram vitoriosos: polarização e de intolerância política. A polarização num determinado nível, lembra, é normal, como é normal que os empresários não gostem de candidatos mais à esquerda - é até desejável algum nível de polarização nas democracias.
O problema é quando elas atingem patamares em que os adversários políticos são considerados inimigos. "A tolerância é uma das maiores regras não escritas das democracias, em que se aceita a vitória dos adversários, as divergências como legítimas e todos os lados concordam com as regras do jogo."
Levitsky teve a oportunidade de observar a pulverização partidária nacional: "Não consegui entender a diferença entre Partido Comunista Brasileiro e Partido Comunista do Brasil, entre Partido Renovador Trabalhista e Partido Democrático Trabalhista".
Levitsky rejeita a sobremesa, uma apetitosa encharcada (doce de ovos) portuguesa, mas aceita um café. "Não podemos deixar esperando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso", justifica. Familiarizado com os países de língua hispânica da América Latina, o professor diz que não sente mais animosidade contra o Brasil nos países vizinhos, como chegou a existir no passado. E promete voltar em breve. Que o português não seja empecilho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário