- Folha de S. Paulo
Parecer sobre Lula não dispõe de autoridade jurídica
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos entrou em vigor no Brasil em 1992. O pacto contempla um Comitê de Direitos Humanos, cuja função é fazer o monitoramento dos compromissos assumidos pelas partes contratantes do pacto, relacionados aos direitos nele contemplados.
O Protocolo Facultativo do Pacto que, no Brasil, foi promulgado por decreto legislativo de 2009, habilita o comitê e seus peritos a receber e examinar as comunicações provenientes de indivíduos que se considerem vítimas de uma violação dos direitos enunciados no pacto.
O comitê e seus peritos não têm competência jurisdicional, ou seja, a atribuição de dizer o direito. Não são uma corte composta por juízes internacionais. Podem, no entanto, como estipula o Protocolo Facultativo, se manifestar sobre comunicações provenientes de indivíduos. Essas manifestações não são sentenças, provisórias ou definitivas. São uma avaliação dos peritos sobre a matéria submetida à sua apreciação.
A recente manifestação dos peritos relacionada aos interesses eleitorais do ex-presidente Lula está causando muita discussão pública. Vou examiná-la circunscrevendo-me aos seus aspectos jurídicos.
Os peritos se baseiam na sua interpretação do artigo 25-b do pacto.
Este assegura, sem restrições infundadas, o direito de votar e ser eleito em eleições periódicas autênticas realizadas por sufrágio universal e por voto secreto que garanta a manifestação dos eleitores.
Os peritos entenderam que não houve até agora violação do artigo 25-b. Admitem a possibilidade da sua violação no tempo. Solicitam, por isso, que o ex-presidente Lula não seja impedido de concorrer à eleição de 2018, até que haja o esgotamento de todos os recursos legais a que tem direito no Brasil.
Desses recursos legais, aliás, os defensores do ex-presidente Lula têm se valido extensa e intensamente, na plenitude do respeito ao devido processo legal e do direito à ampla defesa e ao contraditório que a Constituição brasileira assegura.
Observo com estranheza jurídica que a comunicação dos defensores do ex-presidente Lula foi apresentada ao comitê e por ele recebida antes que tivessem sido esgotados todos os recursos internos disponíveis, como prevê o artigo 2º do Protocolo Adicional.
Registro que o Brasil não foi comunicado pelo comitê da existência de uma alegada violação de dispositivos do pacto, como prevê o artigo 4º do Protocolo Facultativo.
Na substância, realço que o exercício dos direitos previstos no artigo 25-b do pacto não comporta restrições infundadas, mas o seu exercício pode, na linha do que entende o próprio comitê, ser suspenso ou excluído, por motivos legais estabelecidos por lei e que sejam razoáveis e objetivos. "Condenação, por juiz competente, em processo penal", de acordo com o Pacto de São José (artigo 23, parágrafo 2º), é um exemplo de restrição válida.
A Lei da Ficha Limpa, que obedece aos princípios da igualdade e não discriminação, tipifica com alcance geral e não individualizado objetivos razoáveis e de interesse público. Estes, nos seus termos, circunscrevem a atuação política e as condições de não elegibilidade do ex-presidente Lula. A manifestação dos peritos não tomou conhecimento da Lei da Ficha Limpa, o que compromete a inteireza jurídica do seu enunciado.
A opinião dos peritos não possui autoridade jurídica de uma sentença nem a ratio de um parecer fundamentado. Não é um conselho esclarecedor da questão. É uma exortação alinhada com as paixões políticas do momento brasileiro.
Concluo que cabe, com exclusividade, ao Judiciário brasileiro, à luz do ordenamento jurídico internacional e nacional, apreciar se os dispositivos legais que limitam a atuação política e a elegibilidade do ex-presidente Lula, de alguma maneira, estão em contradição com os dispositivos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
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Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores (1992, governo Collor, e 2001-2002, governo FHC) e professor emérito da Faculdade de Direito da USP
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