- Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616
Bolsonaro fará melhor se concentrar sua atenção em cumprir o que ele próprio prometeu na posse: ‘construir uma sociedade sem discriminação ou divisão’
De todas as heranças nefastas deixadas pelos governos do PT talvez a mais deletéria seja a ideologização de quase tudo o que importa na vida nacional. As propostas de esquerda, a bandeira vermelha, o discurso dito progressista — tudo passou a ser sinônimo de qualidade incontornável, enquanto as ideias contrárias eram a expressão acabada do atraso e da maldição. A tradução mais pedestre dessa visão limitada do mundo encontrou sua forma perfeita no discurso do “nós e eles”, que tanto ajudou a fracionar o país.
É, portanto, com certo desalento que se registram e se reiteram as impressões de que o presidente Jair Bolsonaro pretende trilhar o mesmo caminho, apenas com a inversão do sinal ideológico. Na posse no Congresso Nacional, Bolsonaro falou uma coisa. Para as mais de 100 000 pessoas em frente ao parlatório no Palácio do Planalto, falou outra coisa, mas houve pelo menos um ponto de contato entre os dois momentos: a ideologização excessiva.
No discurso de dentro, Bolsonaro disse que pretende resgatar o Brasil da “submissão ideológica” e prometeu ¬livrar o país das “amarras ideológicas” e abrir seus mercados para o comércio internacional “sem o viés ideológico”. No discurso de fora, disse que sua posse marca “o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo”, prometeu combater “ideologias nefastas” que dividem o país e voltou a afirmar sua missão de “retirar o viés ideológico das nossas relações internacionais”.
O governo brasileiro estaria realmente entrando na fase adulta da democracia liberal se, de fato, estivesse começando a se empenhar em livrar-se da “submissão ideológica”, das “amarras ideológicas” ou dos “vieses ideológicos”. Até aqui, no entanto, o governo Bolsonaro demonstrou disposição contrária, sobretudo quando anuncia aderir a um inédito alinhamento automático com a política externa dos Estados Unidos, além de imprimir um tom abertamente ideológico às relações internacionais.
É óbvio que nenhum país, nenhum governo ou governante está imune à influência ideológica, mas não é do interesse brasileiro — do povo, do país, do Estado — que o governo de Bolsonaro continue na mesma marcha beligerante de demonizar uma ideologia só para substituí¬-la por outra com bússola invertida. Esse caminho reaviva a memória dos governos petistas e remete aos mandatários que se imaginam donos da chave da história.
Bolsonaro fará melhor se concentrar sua atenção e sua energia em cumprir o que ele próprio prometeu na posse — “construir uma sociedade sem discriminação ou divisão”. Nessa sociedade, e apenas nessa sociedade, cabe o Brasil inteiro.
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