- O Globo
Se não temos totalitarismo no nacionalismo ascendente, sobra falta de liberdade de pensamento.
Escolhi George Orwell para iniciar o ano, evidentemente não por acaso. Dentro da baleia, ensaio escrito em 1940, revela o Orwell visionário e realista que quase todos associam a suas obras de ficção. Contudo, o lado mais intrigante do escritor está em suas obras de crítica literária e nos ensaios jornalísticos e políticos — a crítica literária e os ensaios muitas vezes mesclam-se de forma esplendorosa, como em Dentro da baleia. Eis um trecho: “Quase com certeza estamos rumando para uma era de ditaduras totalitárias — uma era em que a liberdade de pensamento será a princípio um pecado mortal e mais tarde uma abstração sem sentido”.
Movimentos nacionalistas e populistas à parte, não estamos entrando na era de ditaduras totalitárias que descrevia Orwell. O autor, britânico e liberal, portanto um liberal britânico de pura linhagem, preocupava-se com o fascismo na Europa, com o stalinismo na União Soviética, com o nazismo na Alemanha, com o maoismo na China. Orwell jamais se rendeu às simplificações conservadoras dos regimes ditos “comunistas”, preferindo a sátira para abordar as contradições da utopia socialista inserida em regimes totalitários. A sátira está em falta para tratar das contradições do Brexit de sua terra natal, do trumpismo nos Estados Unidos, da ascensão da extrema-direita mundo afora. Mas divago.
Por razões diversas — dentre as quais não se pode excluir o Big Brother das redes sociais —, a liberdade de pensamento está se tornando um pecado mortal neste final de década. Não tardará para que seja uma abstração sem sentido. “Deus acima de todos”, para religiosos ou não religiosos, é a mais pura retratação dessa abstração sem sentido que é o ato de refletir e escrever sem amarras, sem medo de ser rotulado indelevelmente pelas patrulhas incansáveis.
Ilustrar como estrebucha o livre pensamento é cada vez mais fácil, afinal o livre pensamento exige que a reflexão tenha nuances. Desafio os leitores a encontrar um tema sobre o qual as nuances estejam bem apresentadas hoje em dia. O “globalismo”? Para os detratores, grande conspiração das elites internacionais contra os homens e mulheres esquecidos, contra a classe média; para os mais extremados, contra os valores cristãos. Ou, para os defensores, um benefício inequívoco e mal compreendido por aqueles que não são suficientemente versados sobre o tema. Ignorância de um lado, arrogância de outro. A imigração?
A destruição das culturas locais por gente que quer extrair da população nativa seus direitos — o direito a um bom emprego, a uma renda digna — sem dar nada em troca, sem querer se assimilar. Ou um benefício inequívoco que deve ser preservado a qualquer custo.
O reconhecimento de que disparidades salariais entre homens e mulheres, controladas todas as possíveis razões para isso, prejudicam o crescimento econômico? Coisa de feminista, assunto de menor importância diante de tantas questões mais urgentes. Ou tema que deve ser tratado com a adoção imediata de políticas para combater tais diferenças, ainda que os defensores dessas políticas talvez não tenham compreendido todas as dimensões de tão complicado problema. As mudanças climáticas? Invenção das elites mancomunadas com cientistas sem ética para impedir o progresso ou prejudicar setores específicos que antes empregavam e pagavam bem, como a indústria carvoeira. Ou algo que deve ser levado a sério, ainda que “sério” se resuma apenas a um punhado de palavras nas declarações quase sempre vazias e sem a tração devida dos fóruns internacionais. A China? País imperialista que quer avançar a todo custo, ameaçando a sociedade ocidental com suas práticas desleais. Ou país imperialista que quer avançar a todo custo, ameaçando a sociedade ocidental com suas práticas desleais.
No último ano desta década, neste 2019 que acaba de se iniciar, temos uma escolha. Podemos reaprender a apreciar as nuances dos argumentos e o que cada lado tem a dizer sobre temas tão importantes quanto o ritmo da globalização, a imigração, as desigualdades de salário e oportunidade, as mudanças climáticas, a China. Ou fazer jus à premonição nada auspiciosa de Orwell:
“Entre nas entranhas da baleia — ou, antes, admita estar dentro da baleia (porque, claro, você está).”
Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
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