sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Vinicius Torres Freire: Assombrações no Itamaraty

- Folha de S. Paulo

Se for para valer, nova política externa ameaça segurança nacional e comércio

Ainda é cedo para dizer que a nova política externa brasileira será ameaça à segurança nacional e à economia. Discursos ideológicos de posse são palavras, nada mais do que palavras, até que se verifique sua influência na prática da política internacional.

Além do mais, não sabemos quem terá voz nas negociações comerciais. Pode ser que o comércio exterior fique sob a alçada ou siga diretrizes do Ministério da Economia. Goste-se ou não do programa econômico do novo governo, nesse caso a conversa faz parte do universo da razão.

Ainda assim, causa consternação e ansiedade que o Itamaraty corra o risco de se integrar ao núcleo "Arquivo X" do novo governo (ao lado de Educação e Direitos Humanos).

Como talvez se recorde, "Arquivo X" era uma série de TV americana dos anos 1990 que contava histórias de dois agentes do FBI dedicados a investigar ETs e fenômenos paranormais, assim como as conspirações do establishment com o objetivo de ocultar essas ocorrências do outro mundo.

Isto posto, seria útil mostrar que "a verdade está lá fora" (mote do "Arquivo X"), dar outra vez exemplos de como as transações comerciais deveriam ser uma preocupação essencial do planejamento da política externa.

Acabam de sair os resultados do comércio exterior em 2018. A China, maior cliente dos produtos brasileiros desde 2013, se tornou ainda mais preponderante: 28% das exportações vão para lá (para os Estados Unidos, vão 12%). Desde o fim do século passado, quase 31% do aumento das vendas externas do Brasil se deveu ao consumo chinês.

Os chineses compram 57% do petróleo bruto brasileiro, 82% da soja em grãos, 54% do minério de ferro, 42% da celulose e 17% das carnes, entre os principais produtos brasileiros de exportação.

Os complexos soja, carnes, veículos, além minério de ferro, celulose e açúcar, fizeram 57% do valor das vendas no ano passado.

Cliente morto não paga, cliente arreliado não volta e, no caso da China, pode ser que, no limite, um atrito sério os leve a montar loja para novos amigos (bancar plantações e exploração de petróleo em outra parte). De mais concreto, o país pode perder dinheiro chinês ávido por financiar a nossa infraestrutura mambembe.

O Oriente Médio, na maior parte muçulmano, é outro freguês que pode ser insultado por essa ameaça inédita de maus modos na diplomacia brasileira e decisões equivocadas quanto ao conflito entre Israel e Palestina.

Leva apenas 4% das exportações brasileiras. Mas compra 20% das carnes que vendemos lá fora e 22% dos açúcares. Além do problema em si que é ficar sem voz e moral diante do imenso mundo islâmico, perder negócios nesses setores provoca um estrago que vai das plantações de grãos e cana às indústrias processadoras e fornecedoras do setor, um encadeamento econômico muito sério.

A União Europeia é, por definição, internacionalista, quando não globalista, ambientalista e, de quebra, centro e origem da tradição ocidental. Leva 17,6% do valor das exportações brasileiras.

É muito, mesmo com seus protecionismos, que terá mais desculpas ou motivos para continuar a existir caso o Brasil avacalhe instituições multilaterais de cooperação, achincalhe acordos climáticos e dê outros tiros no pé ou na cabeça, como arrasar o ambiente ou baixar a guarda da vigilância sanitária de suas criações.

Retórica jacu e bizarra não paga as nossas contas externas, mas pode ter troco, o de atrair conflitos exóticos para cá.

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