- O Estado de S.Paulo
O otimismo com a agenda liberal é alto, já a agenda moralista é uma incógnita...
De certa forma o povo aceita que o político fale por ele. Assim o presidente avança do seu jeito, sem modelo definido ou acontecimento que aponte para dizer o que será seu governo. Bolsonaro segue a tradição de usar a linguagem para provocar controvérsia supondo aumentar o capital político. Mas sem método é impossível imaginar o que virá.
Também é impossível aquilatar se enfrentará ou recuará das correntes de força que provoca e se saberá lidar com os furacões que atrai, disposto a correr grandes riscos para si mesmo e para o País.
Guiado apenas por sua experiência pessoal no Legislativo, o presidente precisa de equipe. Sem sentimentos partidários, preferindo ideologia supremacista a diálogo, pode se meter em areia movediça. Seu amor próprio vem da lealdade que recebe de um comando militar que domina seu entorno e aposta no desenvolvimento organizacional da Presidência: vice, Gabinete de Segurança Institucional, Secretaria-Geral, porta-voz, Secretaria de Governo. Acaba usando-os como abrigo antiaéreo para se proteger dos estilhaços que o atingem, por culpa sua. Mas militares sabem que escudos viram alvos e, como diz Churchill, ninguém segura crise de “governo que continua firme na deriva, sólido na fluidez, onipotente na impotência”.
“Pobre o soldado sem os versos do poeta.” Os ministros militares parecem querer livrar o governo do amontoamento de ideias, se quiser falar de disciplina. São especialistas em espaços, observam bem ruídos, localizações e deslocamentos e conhecem o fato de que mesmo fortalezas precisam de passagens, pontos de fuga e ventilação. Talvez não queiram um governo de proibições.
Há uma realidade que precisa ser mudada, porque o Brasil sempre se coloca os mesmos problemas. Não há uma equação clara do que virá. A realidade avança. O ímpeto para mostrar bandeira exige que se cuide mais do foco e da imagem.
O otimismo com a agenda liberal é alto na sociedade. Já a agenda moralista é uma incógnita e um risco explosivo para quem precisa de popularidade para mudar a estrutura econômica. O presidente pressente que a identidade coletiva do povo é feita de costas para os políticos – adversários, é claro – e reforça o preconceito antipolítica como se pudesse comer o bolo e ter o bolo.
De modo geral sempre estamos dois passos atrás da democracia. O Brasil parou de crescer quando aumentou a fatia do Estado no PIB e diminuiu a presença do setor privado. A maior oferta do poder ainda é o favor e a amizade, agravada pelo fato de o lobby não ser regulamentado. E a última declaração do presidente parece dizer que não concorda que na hierarquia da democracia o poder da sociedade se sobreponha ao do Estado. É uma grande contradição com a filosofia liberal e um obstáculo ao surgimento de um circuito de lucro e riqueza mais vantajoso do que a corrupção. Se nossa sociabilidade continuar baseada em rede de tutelas, acomodações, só restará ao governo continuar testando seus limites no Twitter. Até a última jactância desagradável do carnaval, quando, de forma nua e crua, o presidente levou à indecência sua opinião, deve ser vista como improvisação na posição mais alta. Isso ainda é possível porque a formação da opinião pública hoje é móvel, põe o cidadão sob constante escrutínio e o armazena num arquivo customizado aprisionando sua imagem de “seguidor”. Para vazá-lo como estatística por algum mecanismo de busca. O cidadão da internet tornou-se um mendigo faminto de bobagens.
Estamos vivendo o colapso do contexto e ameaçando as reformas. Formar maioria conservadora na sociedade para usar como pressão cultural-moral sobre a política não ajuda em nada a destravar o debate econômico no Parlamento. Para obter disciplina partidária e lidar com vigor para mudar os fundamentos de um país atacado por 800 normas tributárias por dia útil, que está empobrecendo e há 30 anos cresce abaixo da média mundial, é preciso concentrar energia e tomar atitudes que correspondam aos fatos.
Não é costume desafiar o líder no auge do seu triunfo. Essa é a teoria da trégua dos cem dias. Um alarme: a avaliação positiva do presidente é quase 20% melhor do que a avaliação do seu governo. Sinal de que o “novo País” não é uma construção fácil.
O poder de seu Ministério será mais bem percebido quanto mais claras forem as prioridades de cada pasta. Até agora parece um governo de jurisdições. Áreas autônomas e bem homogêneas, enclaves confusos. No Parlamento, embora tenha sofrido enorme renovação nas últimas eleições, podemos dizer que o novo predomina, mas temos de reconhecer que é o velho que ainda domina. Novo não pode ser sinônimo de amador.
No governo Bolsonaro destacam-se cinco diferentes grupos ideológicos e corporativos ativos: os liberais da economia e seus sonhos; os antiglobalização da política externa e seus pesadelos; os militares ativos em vários ministérios e seu pé no chão; os caçadores de infiéis das diversas vocações; os entusiastas de uma Justiça lava-jato e seus alvos conhecidos. Tão dividido na largada, ainda não é um modelo de governabilidade, agravado pela falta de um consistente sexto grupo, o parlamentar, sua trincheira mais desorganizada.
E é ali, no Congresso, que pode acontecer o pior para o governo, que é ver a água se acumular atrás do dique dos insatisfeitos. Há códigos de relacionamento governo-Parlamento que são históricos. E deputado sem poder, aliado de governador quebrado, é confusão contratada.
Se o governo pretende paz no Parlamento, peça conselho a todos, mas nem sempre os siga. Governar com os livres é melhor. Todo governo novo pode muito, mas o que o distingue é a inventividade dos recursos que ele põe a serviço das mudanças.
* Paulo Delgado é sociólogo e copresidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio/SP
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