- O Globo
Em 31 de março de 1964, começou então a pior época de minha vida
Hoje é 1º de abril. Segundo os ingleses, que inventaram essa tradição, trata-se do April Fools, que podemos traduzir, ao pé da letra, por “os tolos de abril”. Ou, mais livremente, por o “dia dos tolos”. Neste dia, desde há uns cinco séculos, parentes e amigos brincam, enganando uns aos outros, com trotes que devem ser surpreendentes e engraçados. De vez em quando, o praticante do dia dos tolos acaba perdendo a mão, fazendo uma brincadeira um pouco mais pesada. É o caso de 1964, no Brasil.
Na véspera desse dia, eu estava a um mês e meio de completar 24 anos de idade quando, no início da noite, me convocaram para uma assembleia na sede da UNE, no Flamengo. Como ex-membro do movimento estudantil (sem nenhuma relação com grupos autoritários de direita ou de esquerda) e ativista do politizado Cinema Novo, eu não podia faltar.
O caso era que os militares haviam se sublevado contra o presidente João Goulart, pretendiam depô-lo e estavam a caminho disso. Um deles, o general Olímpio Mourão Filho, descia com sua tropa de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro. Mas a expectativa na UNE era de confiança no sucesso do governo. Combinei então com Leon Hirszman, antigo secretário-geral de cinema do Centro Popular de Cultura (CPC), a filmagem sobre o que aconteceria nas ruas, no dia seguinte, com a vitória da democracia e da legalidade. As “forças populares” esmagariam a sublevação, e nós iríamos registrar esse momento histórico, com as câmeras da Agência Nacional postas à nossa disposição.
No dia seguinte, 1º de abril, ao acordar, as notícias que ouvi no rádio não coincidiam com as previsões da noite anterior. O rádio devia estar errado. Ou então estava tomado pelo pessoal do Carlos Lacerda, governador do estado, a favor dos militares. Quando cheguei à Praia do Flamengo, o prédio da UNE pegava fogo e estudantes lacerdistas comemoravam eufóricos o fim da entidade. Um deles, meu colega na PUC, teve a generosidade de não denunciar minha presença, preferindo me sussurrar um firme conselho de proteção: “Vá embora daqui, se manda, já!”. Ainda fui até a porta da Agência Nacional, no centro da cidade, encontrar Leon e buscar as câmeras prometidas. A Agência já estava tomada pelo Exército.
Começou então a pior época de minha vida, agravada no horror do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. O regime censurava filmes, peças, discos, livros, tudo que exprimisse uma opinião qualquer sobre qualquer coisa. Na verdade, era proibido ter opinião. A ditadura fechou o Congresso, impediu a imprensa de se manifestar, cassou mandatos e direitos, provocou o exílio de alguns, prendeu, torturou e matou centenas de outros que se opunham a ela. Ou que não tinham nada a ver com isso. Fez vítimas em todos os setores da população, de políticos a estudantes, de artistas a jornalistas, de gente comum a militares dissidentes.
Nosso atual presidente, eleito pelo voto universal do povo brasileiro, já declarou sua admiração apaixonada por um dos mais reconhecidos, sombrios e sanguinários torturadores daquele regime, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Não é portanto estranho que mande comemorar o golpe de 1964 e a ditadura que o seguiu. É apenas injustificável, revoltante, inaceitável.
O Ministério Público Federal recomendou que os comandos militares se abstivessem de manifestações em homenagem à ditadura, declarando que “festejá-la é festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação dos direitos humanos”. A discreta ordem do dia do Ministério da Defesa lembra que as Forças Armadas brasileiras já haviam combatido, no passado, os responsáveis pela Intentona de 1935 e o nazifascismo dos anos 1940. O ministro Fernando Azevedo e Silva, com o apoio dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, se refere ao posterior empenho delas “na transição para uma democracia”, admitindo portanto que esta não existia durante o regime militar.
Para saber da autoconsciência do regime, basta ouvir a gravação histórica da reunião ministerial que baixou o AI-5. Nela, o ministro do Trabalho, coronel Jarbas Passarinho, diz ao presidente Costa e Silva: “Repugna à consciência de Vossa Excelência e de todos os membros desse conselho, enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples. Às favas, senhor presidente, neste momento, com os escrúpulos de consciência”. E a manchete do GLOBO, em 26 de março de 1969, três meses depois do AI-5: “Costa e Silva: o governo já cuida da volta à democracia”. Se a censura permitiu a manchete, é porque a democracia tinha se mandado mesmo, antes da anunciada volta. Até o Lobão, artista de qualidade que resolveu implicar com seus pares na defesa do regime militar, afirma hoje que “se o regime não era totalitário, era autoritário (...) a gente não pode glorificar expedientes sombrios”.
No dia 13 de outubro de 1978, o general-presidente Ernesto Geisel promulgaria a emenda constitucional nº 11, que revogou o AI-5 e todos os demais atos contrários à Constituição. Se as Forças Armadas desejam comemorar uma data referente ao período, que mereça celebração, a data é essa.
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