- Folha de S. Paulo
Bolsonaro é capitão oportunista, capaz de dirigir o barco para a tormenta de propósito
Dessa vez, tenho que concordar com a Damares. Eduardo Bolsonaro é a cara do país que elegeu o pai dele. Ou pelo menos daquela pequena mas determinante parcela de eleitores supostamente educados que agora se envergonha e não se reconhece ao olhar no espelho, embora não haja nenhuma surpresa nem contradição entre Bolsonaro candidato a presidente e o filho indicado pelo pai a embaixador em Washington.
É com essa parcela que devemos conversar? Beleza. Não vamos chamá-los de fascistas, claro, mas será que podemos ao menos tratá-los como adultos responsáveis por seus atos?
Fora a grande parte de desentendidos, manipulados e desiludidos entre os eleitores de Bolsonaro, espanta que os que votaram com a consciência do oportunismo esperassem do presidente algo em desacordo com o sentido de oportunidade.
O oportunismo os levou a subestimar os planos do ex-militar de baixa patente, de aparência tosca e manipulável, que ao longo de décadas de vida pública nunca fez nada pelo país, mas soube articular, com a colaboração dos filhos na linha de frente, uma bem-sucedida estratégia de ocupação do poder. Ao que parece, o oportunismo aqui é contagiante.
Vejamos até quando esses eleitores “conscientes” conseguem tirar vantagem do comando do líder nessa marchinha suicida de provocações e incitações contra o Estado de Direito. Ou será que, diante das investidas do comandante contra a Justiça, a verdade, a ciência, a educação e as artes (todas o contrariam), ainda resta alguma dúvida sobre quem são suas vítimas?
É claro que o problema não se resume a nós, brasileiros. Economistas, historiadores, sociólogos e cientistas políticos estão aí para explicar racionalmente como os americanos se renderam a Trump e os ingleses acabaram nas mãos de Boris Johnson.
No campo da irracionalidade, porém, um escritor como Herman Melville, cujos 200 anos de nascimento se comemoram neste mês, talvez tenha mais a nos dizer sobre o que nos faz delegar o comando de nossas vidas a homens guiados pela pulsão de morte.
Em “Moby Dick” (1851), o capitão Ahab projeta o mal absoluto numa baleia branca. E convence um punhado de marinheiros e baleeiros a acompanhá-lo na sua busca obsessiva e na sua guerra pessoal transformada em alucinação coletiva através dos oceanos, como se fossem todos vítimas do mesmo mal. O romance é a história dessa caçada suicida.
Em “The Death of Satan” (a morte de Satã, publicado em 1995), Andrew Delbanco, biógrafo de Melville, escreve sobre o autor de “Moby Dick”: “[Ele] adiantou a história do século 20, que se tornaria, como todos sabemos, o século do demagogo. (...) O cruzado que pinta o mal como algo externo a si é de longe o pior tipo de bárbaro. A luta do século 20 foi tentar impedir que esse perito em ódio tomasse conta do mundo”. Que é que nos fez capitular agora?
É claro que há diferenças fundamentais entre a grandiosidade do personagem criado por Melville e a pequenez dos nossos atuais demagogos e profissionais do ódio, mas a principal é que, antes de submeter a tripulação ao delírio de sua obsessão pessoal, Ahab já estava decidido a pôr a própria vida em risco.
Bolsonaro, ao contrário, não é nenhum louco. Não é um personagem trágico, movido por forças contraditórias e insondáveis, que têm a ver com um acerto de contas com Deus, com o destino e com seus próprios fantasmas. Está mais para o capitão oportunista e inescrupuloso, capaz de dirigir o barco para a tormenta (incitar a polarização, o conflito e a violência), de propósito e em benefício próprio (nosso capitão tem um histórico nisso), e depois abandoná-lo à deriva, com a tripulação e os passageiros a bordo.
Um louco suicida não se aproveita do momento e do cargo, já na primeira oportunidade e em detrimento do espírito republicano que o pôs ali, da ética e do bem comum, para favorecimento pessoal e de sua família.
Bolsonaro tem seus planos (descarados no caso da indicação do filho a embaixador em Washington). O suicídio não é dele; é de quem o segue, achando que o usa. Ou será que ainda há dúvida quanto à contribuição que seus imediatos, a começar por Queiroz, Flávio, Carlos e Eduardo (aquele que também sugeriu um soldado e um cabo para fechar o STF), têm a dar aos brasileiros?
Há uma semana, Bolsonaro chamou o jornalista Glenn Greenwald de malandro, por ser casado com outro homem e ter adotado seus filhos no Brasil. Em outros tempos, poderia tê-lo chamado de malandro por ser judeu.
Afinal, quem é o malandro aqui? E quem são os tolos?
*Bernardo Carvalho, romancista, autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio”
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