No dia 1.º de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) referendou uma liminar concedida em junho pelo ministro Luís Roberto Barroso suspendendo um trecho da Medida Provisória (MP) 886 que transferia a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. É a segunda derrota do governo na Corte. Na primeira, o plenário determinou que ele não poderia extinguir conselhos de políticas públicas que tenham sido criados por lei. Ambos os casos têm em comum a tentativa do Poder Executivo de atropelar prerrogativas do Legislativo. Não surpreende que em ambos a decisão do plenário tenha sido por unanimidade. O recado, dado logo na retomada das atividades após o recesso, é claro: ou o governo Bolsonaro põe freios ao seu voluntarismo ou eles terão de ser impostos, ostensivamente se necessário, pela Corte constitucional, com todo o desgaste ficando na conta do Executivo.
O confronto com o Congresso data do primeiro mês de governo. Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória que reestruturava as pastas ministeriais. O texto foi aprovado pelo Congresso, com alterações. Entre elas, vetou-se a transferência da competência para a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. Na mesma sessão legislativa, o governo editou nova medida provisória, retomando a transferência.
Diante disso, quatro partidos ajuizaram ações diretas de inconstitucionalidade. Em junho, o relator das ações, ministro Luís Roberto Barroso, suspendeu liminarmente os efeitos da MP. “Houve uma manifestação expressa e formal do Congresso Nacional no sentido de rejeitar esta proposta legislativa do presidente da República”, disse o relator na ocasião. “Houve, no mesmo dia, a edição de nova MP, de número 886, para reincluir matérias que haviam sido rejeitadas.” Trata-se de uma flagrante infração ao artigo 62 da Constituição, que em seu parágrafo 10 aponta que “é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada”.
A Advocacia-Geral da União (AGU) alegou que a demarcação de terras indígenas tem sido feita sem planejamento estratégico, sob pressão de grupos de interesse, por uma Funai deficiente em recursos humanos e orçamentários. Não importa. O problema é anterior ao mérito. O governo tem todo o direito de defender o seu arranjo como o mais eficaz e melhor para o interesse público. Há inclusive bons argumentos nesse sentido. Mas uma vez que a matéria foi proposta por medida provisória e rejeitada pelo Congresso, ela só pode ser reposta através de projeto de lei.
No plenário do STF, coube ao decano, o ministro Celso de Mello, dirigir palavras duras ao governo. “O comportamento do atual presidente”, disse em seu voto, “traduz uma clara, inaceitável transgressão à autoridade suprema da Constituição Federal e uma inadmissível e perigosa transgressão ao princípio fundamental da separação de poderes.” Comportamentos desse tipo, segundo o ministro, expõem o regime de governo e as liberdades da sociedade civil “a um processo de quase imperceptível erosão, destruindo-se lentamente e progressivamente pela ação ousada e atrevida, quando não usurpadora, dos poderes estatais, impulsionados muitas vezes pela busca autoritária de maior domínio e controle hegemônico sobre o aparelho de Estado e direitos e garantias básicas do cidadão”.
O episódio seria mais uma instância do voluntarismo legiferante do presidente Bolsonaro, se não tivesse sido marcado por um desfecho inédito e extraordinário: um ordinário pedido de desculpas. “Houve falha nossa. Falha minha, né. É minha, porque eu assinei (a MP)”, disse Bolsonaro no dia seguinte. Mesmo que o recado tenha sido unânime por parte dos 11 ministros da Suprema Corte, considerando o histórico de Jair Bolsonaro de deslegitimar tudo e todos que contrariam as suas opiniões, não deixa de ser um gesto surpreendente. Com isso, o País só tem a ganhar.
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