- Folha de S. Paulo
Desaforos à Constituição e falta de decoro prenunciam entrada no pântano
Jair Bolsonaro cruzou um limite que o regime vigente exige ser respeitado, para defender sua própria sobrevivência. Por inconsciência ou porque ainda não fosse hora de levar a tanto as provocações e agressões do seu projeto antidemocrático, Bolsonaro não investira contra a convivência e a independência dos Três Poderes. Foi o que fez agora.
O antecedente desse avanço já o prenunciava, consistindo, em palavras do ministro Celso de Mello no Supremo, na “inaceitável transgressão à autoridade da Constituição”. Apesar do veto constitucional à reedição de medida provisória no mesmo ano legislativo de sua recusa, Bolsonaro a fez para insistir na entrega, mais que suspeita, da demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura. Chamado a decidir, o Supremo devolveu a demarcação à entidade natural, a Funai. Por unanimidade.
A questão, em si, nada teve de incomum no tribunal. Exaltou-o o ato abusivo da Presidência da República. Celso de Mello parece cansado, já, dos desaforos ao texto constitucional, de seu especial afeto. Mas Bolsonaro não parou no desafio. Pouco depois da decisão judicial, aproveitou uma fala sobre radares de estrada para investir contra o sistema. Não falou ao grupo habitual de repórteres. Falou pelas redes. E ao vivo, áspero:
“Está uma briga, porque a Justiça em cima da gente [...], é a Justiça lamentavelmente se metendo em tudo”. Nem é divergência, é briga.
Nas redes, ao vivo, é claro o propósito de jogar seus milhões de seguidores, ou a opinião pública em geral, contra o Supremo. Por extensão, contra o Judiciário. É, no mínimo e por certo, tática de dupla pressão: para acionar seguidores e para retrair alguns ministros em assuntos do interesse de Bolsonaro.
Para além do mínimo, pode ser o início de nova escalada, como houve nos últimos meses. Não faria sentido que seu objetivo estivesse só no Supremo —cuja desfiguração, aliás, o então candidato prometeu aos furiosos na campanha.
A indicação formal de Eduardo Bolsonaro ao Senado, para embaixador nos Estados Unidos, é um desafio seguindo outro. Nepotismo ostensivo na falta de formação, de experiência e pelo aplauso de Eduardo a Trump e suas políticas. Também entre o pileque paternal e a incitação contra o Supremo os objetivos se confundem.
Bolsonaro empurrou para a frente outros limites, no caso, pessoais. É de um despudor vergonhoso para o país esta regurgitação sua: “Estou cada vez mais apaixonado pelo Trump”. Nem o Brasil atual merece ver-se sem resposta alguma de suas instituições, quando a função presidencial é sujeitada a tamanha falta de decoro. Se ao apaixonado falta compostura, espera-se que alguém a tenha para impô-la, como quer o que reste de dignidade ao país. Ou não resta?
Além de Bolsonaro, as revelações do The Intercept Brasil/Folhaavançaram. Na temática, com Deltan Dallagnol e outros, inclusive da Receita Federal, agindo sem base legal contra ministros do Supremo.
O repúdio às mentiras de Bolsonaro sobre Fernando Santa Cruz, assassinado pela ditadura, avançaram muito a adjetivação definidora de Bolsonaro, como “repugnante”, “nojento” e outros achados. Mas Bolsonaro avançou contra o regime de Constituição democrática. Uma entrada no pântano.
LEIA LIVROS
O ano passado que você viu talvez não fosse o que você viu. Daí, pela ed. Record, “Sobre Lutas e Lágrimas”, “uma biografia de 2018” escrita, de fato, no decorrer do ano pelo jornalista-biógrafo Mário Magalhães. Original, bem escrito, incisivo, é também muito revelador. E fundamental para não se ver com incompreensão e espanto este 2019, que já estava por lá.
“Poder Midiático e Disputas Ideológicas”, organizado pelo competente e incansável Dênis de Moraes para a ed. Consequência, reúne autores daqui e de fora em temas que parecem específicos de profissionais da mídia, mas não. Sempre que se fala de mídia, na verdade é a leitores, espectadores e internautas que mais interessa. E o tema é quente.
Também os livros podem ter bravura ou covardia. “Sobre o Autoritarismo Brasileiro” (Cia. das Letras) está no primeiro caso. O Brasil como foi feito e como é, eis o que emerge de mais esse acréscimo, lúcido e de imensa franqueza, de Lilia Moritz Schwarcz à sua brilhante e já numerosa obra.
EM CANA
Preso em Miami na tarde de sexta-feira (2), em caso de desvios financeiros de fundo de pensão, Paulo Figueiredo tinha negócios com Donald Trump. O terreno escolhido pelo presidente americano na Barra da Tijuca, para mais um hotel de sua rede, era de Paulo. O preso, sempre muito falado a propósito de comissões, é neto do general Figueiredo.
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