Textos redescobertos foram transmitidos durante e depois da 2.ª Guerra Mundial e trazem sátira de líderes nazistas
Elias Thomé Saliba*, especial para o Estado de S. Paulo / Aliás
“Eu exijo reconhecimento público e não apenas cópias dos meus métodos”, adverte um ressuscitado Barão de Munchausen, em ríspido diálogo com Hitler e Goebbels – ao perceber que os chefões nazistas eram incompetentes ao malbaratar a arte maior de Munchausen que era a de tornar a verdade algo completamente desprezível. Este é um dos diálogos, dos mais engraçados, contidos nos 19 roteiros inéditos de radioteatro, escritos pelo jovem Antonio Callado, e, irradiados pela Seção Brasileira da BBC, nas noites de sexta-feira, entre os anos de 1943 e 1947. A preciosa edição, datação e organização dos manuscritos resultou do trabalho do professor Daniel Mandur Thomaz, da Universidade de Oxford.
Como era de se esperar, em pleno curso da 2ª Guerra Mundial – e em meio a uma outra guerra, a da propaganda radiofônica entre os britânicos de um lado e os alemães e italianos de outro – os textos guardam, além da óbvia anglofilia, um tom vagamente ufanista em algumas peças, já que o intuito agregador e patriótico, deveria cumprir a função de mobilizar os ânimos da população e dos próprios militares no esforço de guerra. Contudo, na grande maioria das peças - sobretudo as que se passam no cenário brasileiro - revela-se o esforço do escritor, não despido de uma certa nostalgia, em representar a realidade do Brasil através do que havia de melhor na sua história e na sua literatura. Lá estão Colombo, Pedro Alvares Cabral, Fernão Dias Paes, Castro Alves, Santos Dumond, Rui Barbosa – todos transmutados em personagens que expressam suas visões da realidade latino-americana e brasileira nos criativos diálogos contidos nas peças.
É o caso também do roteiro de Correio Brasiliense, de setembro de 1943, no qual há um diálogo bastante informal entre Hipólito José da Costa, responsável pelo famoso Correio Braziliense, de 1808 - uma das primeiras realizações do jornalismo brasileiro - e o historiador Robert Southey, autor da primeira History of Brazil – com este último tecendo elogios ao tom do jornal, segundo ele, longe do tom sedicioso e panfletário que levaram o jornalista ao exílio. Ou no tresloucado roteiro de “O recado de D. Pedro”, provavelmente transmitido em 1945, quase no final da guerra – com “O Sole Mio na abertura, com fading de um som de veículo barulhento” - no qual pracinhas brasileiros, encontram uma biblioteca para passar a noite e, um deles, ouvindo um barulho suspeito, acaba dando um tiro, que acerta, justamente volume da Ciência Nova, de Giambattista Vico. Após alguns momentos, é o próprio Vico quem ressuscita, descrevendo para os pracinhas a sua concepção de história cíclica e reivindicando o titulo de “pai da moderna concepção de História”; D. Pedro só aparece numa pontinha final, confundindo Vico com Dante e soltando pérolas, do tipo ...”O Brasil só progride à noite, quando os brasileiros estão dormindo...”
Mas também há roteiros com soldados comuns, no ambiente cotidiano da guerra, principalmente com pracinhas da FAB, que discutem algumas estratégias de bombardeios aéreos, utilizando-se de trocadilhos jocosos, como FAB(“Força Aérea à Beça” ou RAF (“Rebentando a Alemanha do Füher”).
Irradiadas naquele ambiente bélico, é claro que as peças passaram por censura prévia (o nome do censor aparecia no cabeçalho dos roteiros) mas, é impossível definir, a partir dos manuscritos, segundo o professor Mandur, se as alterações vieram do censor ou do trabalho de edição do próprio Callado.
Nascido das primeiras experiências ainda precárias da linguagem radiofônica, espremido entre o teatro e o cinema(que empregavam estímulos sonoros e visuais) e dispondo apenas do som para criar cenários, ações e diálogos, o radioteatro transformou-se, na época, em gênero de escrita dificílima para o escritor de roteiros, forçado a prever sonoplastias, intervenções de contrarregras com ruídos, barulhos e rumores, enfim tudo aquilo que substituísse o olho pelo ouvido, exercitando aquela encantadora imaginação sonora dos primeiros ouvintes de rádio.
Embora o então jovem Callado, tenha introduzido efeitos de dramatização na sonoplastia, também fica difícil, como querem alguns estudiosos do tema - enquadrar os roteiros como prováveis precursores da radionovela, mesmo porque as referências literárias e históricas eruditas introduzidas, que, afinal, eram parte natural da formação intelectual do jovem escritor -, mostravam-se um pouco distantes da linguagem radiofônica posterior, que irá buscar a audiência de um público de ouvintes mais amplo e variado. De qualquer forma, os extensos exercícios de narrativa e diálogo contidos nos preciosos e pioneiro roteiros radiofônicos, constituem fontes valiosas para a história do rádio e certamente marcaram a dramaturgia, a escrita jornalística e, com certeza, própria literatura de maturidade de Antonio Callado.
*Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e autor, entre outros livros, de ‘Crocodilos, Satíricos e humoristas involuntários’
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