- Folha de S. Paulo
Temos que assumir a responsabilidade de executar um projeto moderno, disruptivo, ousado e factível
Eliana tem 11 anos e me conta: “Quando crescer vou ser juíza”. Chances de o desejo se concretizar? Bem poucas, hoje residuais.
Estamos no coração da Amazônia, algumas horas rio acima pelo Solimões, partindo de Tefé, cidade a cinco dias de barco de Manaus. A menina é neta de dona Diolinda, que mora sobre as águas do rio há 62 anos. A casa foi construída com madeira de castanheira sobre palafitas.
Eu e esta senhora temos uma conexão de longuíssima data sem jamais nos conhecermos pessoalmente. Ela e o marido não têm luz elétrica em casa. Possuem apenas um gerador, que ligam todo sábado. Para quê? Para assistir ao meu programa em uma tevê cuidadosamente instalada no meio da pequena sala.
Uma honra enorme para mim. O aparelho se destaca sobre uma mesa de madeira, protegida por um lençol —e velada por uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida pendurada na parede.
Como nos “conhecemos” há quase 20 anos, mesmo sendo uma visita inesperada para ela, estabelecemos um registro de cumplicidade rapidamente. A conversa caminha bem e isso me encoraja a tentar entender desejos e angústias da família.
Seu Clóvis, o marido, vive de produzir farinha de mandioca, que vende a menos de R$ 1 por kg em Tefé. Por dias a fio, ele consegue processar 50 kg de farinha. Mais do que isso, nem os braços nem a canoa aguentam.
Trabalho árduo, que lhe rende R$ 40. O resultado mal paga o almoço na “cidade grande”. A família vive com simplicidade —a casa é sólida, e a alimentação, com pouca variedade, baseada em peixes, mandioca e frutas. O lugar é majestoso —moram num dos locais mais belos que já visitei em toda a minha vida.
Dona Diolinda e seu Clóvis, porém, se sentem pobres. Mesmo nas profundezas da floresta, a tevê, o rádio e a telefonia 3G integram o dia a dia das famílias. A escola também chegou às comunidades ribeirinhas de toda a bacia amazônica. Há, por todo lado, inclusive nos recantos mais ermos, formação e informação.
Esses direitos conquistados não fazem desaparecer, entretanto, o desejo de “ter” o que não se pode comprar ou a vontade de “ser” o que não parece possível até aqui. Para dar a Eliana a oportunidade de se tornar juíza, temos que assumir a responsabilidade de executar um projeto moderno, disruptivo, ousado e factível para a Amazônia.
E essa empreitada só terá sucesso pleno se possibilitar também à dona Diolinda comprar o fogão que ela viu no comercial da tevê e amou. Só nos estados que tocam a Amazônia, vivem mais de 25 milhões de brasileiros. Se quisermos mesmo proteger nossas florestas, temos de começar cuidando das pessoas que lá habitam.
Não precisamos ser ativistas para entender que a ideia de ambiente, como tudo, se conecta a todo o resto que compõe nossas existências. E pensar no seu equilíbrio, longe de ser chatice ou conversa restrita a especialistas, tem a ver com bom senso, inteligência e instinto de sobrevivência.
Somos passageiros neste planeta e estamos no caminho do suicídio coletivo ambiental. De nada adianta flechar o mensageiro deste diagnóstico, a mensagem segue existindo incólume. Nem sequer tuitar impropérios contra quem ousa discordar.
Até 2007 era impossível navegar pela “Northwest Passage” (canal acima do circulo polar ártico que liga o oceano Atlântico ao oceano Pacífco) sem estar a bordo de um navio quebra-gelo. Hoje é frequente que navios de cruzeiro incluem em seus roteiros a passagem pelas águas da região.
É fácil entender como a nossa gestão sobre a Amazônia impacta diretamente nesta conta; nela mantemos quase 1/4 do estoque de carbono em florestas no planeta.
Quando desmatamos, emitimos o carbono e reduzimos a capacidade de absorção da atmosfera. A ciência mostra que precisamos chegar as emissões negativas na segunda metade do século para garantir ficarmos abaixo de 1,5°C de aumento médio da temperatura global, pactuado no Acordo de Paris em 2015.
Uma elevação acima disso pode significar a morte de cerca de 150 milhões de pessoas decorrentes de problemas com a poluição, e até a inviabilidade de se viver em vastas regiões de países equatoriais. Sem a Amazônia não tem como atingir este objetivo.
O fato é que não estamos levando a sério nossa responsabilidade com a maior floresta tropical do mundo. E nossos erros e a nossa inação podem condenar à desilusão toda uma nova geração.
Não temos que brigar com ninguém; temos, sim, que nos organizar como sociedade civil. Com uma mão nos defender de politicas equivocadas que trarão enormes prejuízos ao país e ao planeta. E com a outra propor soluções, projetos e políticas públicas inteligentes e exequíveis.
Vivo um misto de tristeza e vontade de agir ao perceber que minha geração está perdendo a chance de manejar —de maneira sustentável, honesta e socialmente responsável— os trilhões de reais ali em repouso. Riqueza que pode colocar nosso país em um novo patamar de desenvolvimento, abrindo janelas de oportunidade incríveis na Amazônia.
Não é “achismo” ou tampouco diletantismo. É fé na ciência e no conhecimento.
Há anos, estudos sérios mostram que não seria tão complexo equilibrar o empreendedorismo com a preservação do bioma amazônico. Já foram desmatados mais de 80 milhões de hectares (uma área maior que os estados de SP, PR, RJ e ES juntos), dos quais 2/3 estão subutilizados, degradados ou abandonados. Um bom começo seria estruturar o uso inteligente desse vasto território.
Os desafios são gigantescos e exigem sabedoria. Os extremistas de ambos os lados da atual polarização política atrapalham demais.
Para avançar como nação, precisamos fazer a maioria das brasileiras e dos brasileiros remar na mesma direção. E o norte tem de ser o desmatamento zero. Só assim vamos construir as condições para reprimir fortemente o crime organizado, sufocar os garimpos ilegais e conter os grileiros.
Apenas unidos e liderados pelo bom senso vamos conseguir fazer valer todo o rigor da legislação existente, desarticulando os interesses obscuros que tramam uma terra sem lei. É uma obrigação cívica o desafio de melhorar as vidas da Eliana, da dona Diolinda e do seu Clóvis. Os sonhos dessas pessoas, desses cidadãos, são também os nossos. Realizá-los é uma missão possível e urgente.
Das minhas andanças pela Amazônia, e do genuíno interesse em aprender e entender ouvindo o que de melhor foi produzido até aqui sobre o tema na academia, entidades publicas, privadas e terceiro setor, acredito, sim, na construção de uma projeto para uma Amazônia 4.0, onde nossas belezas locais
possam ser compartilhadas por meio do turismo sustentável.
Onde a convivência entre o agronegócio e a floresta sejam harmônicas. Onde os índios vivam em paz nas suas terras com suas tradições. Onde a extração de minério siga gerando riquezas sem destruir tudo ao seu redor. Onde uma legislação clara e justa jogue luz sobre a propriedade da terra. Onde os abusos e ilegalidades sejam fortemente reprimidos, norteados por sistemas de inteligência e controle militares e governamentais modernos e competentes.
Onde, rio abaixo, a vida em Manaus siga se desenvolvendo não baseada apenas na produção de motocicletas e eletrodomésticos, mas à luz da inovação, de produtos e subprodutos da floresta que o mundo todo quer conhecer e desfrutar, de cosméticos a remédios, passando por perfumes, tecidos, fibras, alimentos, tecnologia e ciência.
Há caminhos plenamente possíveis e ideias não faltam. Mas é fundamental que nos organizemos como sociedade para agir, por que ninguém o fará por nós.
Acredito no Brasil, na nossa capacidade de se organizar e numa Amazônia preservada e desenvolvida, onde a Eliana possa realizar seu sonho de ser juíza. Tem jeito.
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