Nada é tão precário quanto viver
Nada quanto ser é tão passageiro
É quase como gelo derreter
E para o vento ser ligeiro
Chego onde sou estrangeiro
Um dia passas a margem
De onde vens mas onde vais então
Amanhã que importa que importa ontem
Muda o cardo e o coração
Tudo é sem rima nem perdão
Passa na tua têmpora teu dedo
Toca a infância como os olhos veem
Baixa as lâmpadas mais cedo
A noite por mais tempo nos convém
É o dia claro envelhecendo
As árvores são belas no outono
Mas da criança o que é sucedido
Eu me olho e me assombro
Deste viajante desconhecido
Seu rosto e seu pé desvestido
Pouco a pouco te fazes silêncio
Mas não rápido o bastante
Para não sentires tua dessemelhança
E sobre o tu-mesmo de antes
Cair a poeira do tempo
É demorado envelhecer enfim
A areia nos foge entre os dedos
É como uma água fria em torvelim
É como a vergonha num crescendo
Um couro duro corroendo
É demorado ser um homem uma coisa
É demorado renunciar totalmente
E sentes-tu as metamorfoses
Que se passam internamente
Dobrar nossos joelhos lentamente
Ó mar amargo ó mar profundo
Qual é a hora da preamar
Quanto é preciso de anos-segundos
Ao homem para o homem abjurar
Por que por que esse gracejar
Nada é tão precário como viver
Nada quanto ser é tão passageiro
É quase como gelo derreter
E para o vento ser ligeiro
Chego onde sou estrangeiro
(Paris, 3/10/1897-24/12/1982)
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