Ação de Boris Johnson para ampliar recesso parlamentar é última de uma série que mina lentamente valores liberais
- The Economist*| O Estado de S.Paulo
No geral, o que persiste é a noção de que as democracias morrem por um cano de revólver, em golpes e revoluções. Hoje, entretanto, é mais provável que ela seja estrangulada lentamente em nome do povo. Veja o caso da Hungria, onde o partido no governo, o Fidesz, utiliza sua maioria parlamentar para tomar conta das agências reguladoras, dominar o mundo empresarial, controlar os tribunais, comprar a mídia e manipular as normas eleitorais.
O primeiro-ministro Viktor Orbán não precisa infringir a lei, porque o Parlamento que ele controla pode alterá-la. E não necessita da polícia secreta para subtrair seus inimigos durante a noite. Eles podem ser colocados no devido lugar sem violência, pela imprensa dominada ou pelo fisco. Na forma, a Hungria é uma democracia florescente, mas no espírito é um Estado de um único partido.
As forças que atuam na Hungria estão socavando outros sistemas de governo também. Isso vem ocorrendo não apenas em jovens democracias, como a Polônia, onde o Partido da Lei e da Justiça decidiu copiar o Fidesz, mas mesmo em outras mais perenes como Reino Unido e Estados Unidos. Esses sistemas de governo já estabelecidos não estão prestes a se tornar Estados de um único partido, mas já mostram sinais de decadência. E quando a deterioração se instala, é extremamente difícil de conter.
No âmago da degradação da democracia húngara está o cinismo. Depois que o chefe de um governo socialista visto como corrupto admitiu ter mentido para o eleitorado em 2006, os eleitores aprenderam a imaginar o pior dos seus políticos.
Esta tendência foi explorada entusiasticamente por Viktor Orbán. Em vez de apelar para a tolerância e generosidade dos seus compatriotas, ele semeia a divisão, instiga o ressentimento e explora seus preconceitos, especialmente no tocante à imigração. Este teatro político tem por finalidade desviar a atenção do seu objetivo real, a manipulação astuta de regras e instituições obscuras para garantir seu controle do governo.
No passado, mesma história
Durante a década passada, embora em menor grau, a mesma história se desenrolou em outros lugares. A crise financeira persuadiu os eleitores de que eram governados por elites indiferentes, egoístas e incompetentes. Wall Street e a City de Londres receberam socorro, ao passo que pessoas comuns perderam seus empregos, suas casas e seus filhos e filhas em campos de batalha no Iraque e no Afeganistão.
No Reino Unido irrompeu um escândalo envolvendo gastos de parlamentares, os EUA foram asfixiados pelos lobbies que canalizam dinheiro corporativo para a política.
Em uma pesquisa realizada no ano passado pelo Pew Research Center, mais da metade dos eleitores de oito países da Europa e América do Norte se mostrou insatisfeita com o modo como a democracia vem funcionando. Para 70% dos americanos e franceses indagados, os políticos eram corruptos.
Os populistas exploraram esse ressentimento do eleitorado. Eles desprezam as elites, mesmo que eles próprios sejam ricos e poderosos; e prosperam com a ira e a divisão que instigam. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump disse a quatro parlamentares mulheres para “retornarem aos seus países falidos e infestados de crimes dos quais elas vieram”.
Em Israel, Binyamin Netanyahu qualificou as investigações oficiais sobre supostos atos de corrupção por ele praticados como parte de uma conspiração do establishment contra seu governo.
No Reino Unido, Boris Johnson, carecendo de apoio entre os parlamentares a um Brexit sem nenhum acordo, deixou seus oponentes indignados ao manipular um processo para suspender o Parlamento durante cinco semanas cruciais.
Você pode perguntar, qual é o problema com um pouco de cinismo? A política sempre foi um negócio medonho. Os cidadãos de democracias vibrantes há muito tempo nutrem um desrespeito saudável pelos seus governantes.
Cinismo demais corrói a legitimidade
Mas cinismo demais corrói a legitimidade. Trump endossa o desprezo dos seus eleitores por Washington, trata seus oponentes como estúpidos, ou se eles ousam defender a honra ou princípio, os chama de hipócritas mentirosos – uma atitude cada vez mais refletida na esquerda.
Os defensores e os contrários ao Brexit caluniam uns os outros, levando a política a extremos porque qualquer acordo com o inimigo é tradição. Matteo Salvini, líder da Liga na Itália, respondeu às queixas sobre a imigração reduzindo os espaços nos abrigos, sabendo que imigrantes vivendo nas ruas agravarão o descontentamento.
Viktor Orbán tem menos da metade dos votos, mas todo o poder – e se comporta dessa maneira. Ao assegurar que seus oponentes não participem na democracia, ele os incentiva a manifestarem sua cólera por meios não democráticos.
Os políticos cínicos denigrem as instituições e as vandalizam. Nos EUA, o sistema permite que uma minoria de eleitores controle o poder. No Senado isto é proposital, mas na Câmara é promovido pela manipulação rotineira e a supressão de eleitores. Quanto mais politizados se tornam os tribunais, mais a nomeação de juízes é contestada.
No Reino Unido, a chicana parlamentar de Johnson está causando um dano permanente à Constituição. Ele se prepara para transformar a próxima eleição numa luta entre Parlamento e pessoas.
A política se comportava como um pêndulo antes de o poder retornar para a direita. Agora ela ficou mais confusa. O cinismo arrasta a democracia para baixo. Os partidos fraturam e se encaminham para os extremos. Os populistas convencem os eleitores de que o sistema os está servindo mal e solapam ainda mais a política. O que é ruim fica pior.
Nem Londres e nem Washington estão prestes a se tornarem uma Budapeste. O poder é mais difuso e as instituições têm uma história mais longa – o que tornará mais difícil capturá-los do que num país de 10 milhões de pessoas. Além disto, as democracias se renovam. A política americana estava se dilacerando na era do Weathermen e do Watergate, mas se recuperou nos anos 80.
Esgotando todos os recursos e possibilidades
A resposta ao cinismo começa com políticos que troquem a indignação pela esperança. O homem forte da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, sofreu uma derrota relevante na disputa pela prefeitura de Istambul para Ekrem Imamoglu, que fez uma campanha incansavelmente otimista.
Os antipopulistas de todos os lados devem se unir em apoio a defensores da lei como Zuzana Caputova, nova residente da Eslováquia. Na Romênia, Moldávia e República Checa os eleitores se revoltaram contra líderes que seguiam o caminho de Viktor Orbán.
A coragem dos jovens que vêm protestando nas ruas de Hong Kong e Moscou é uma demonstração poderosa do que muitos no Ocidente parecem ter esquecido. A democracia é preciosa e aqueles que têm a sorte de tê-la herdado devem lutar para protegê-la. / Tradução de Terezinha Martino
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