- Folha de S. Paulo
Soubemos conduzir um programa de reformas, mas há caminho pela frente
O país anda com síndrome de abismo. Dias atrás o apresentador Luciano Huck fez uma palestra dizendo que "se a gente não fizer nada, o Brasil vai implodir". Ele não explicou exatamente por que o país iria pelos ares. A síndrome de abismo tem disso. Você não precisa explicar por que vamos todos afundar. Todos, de alguma maneira, já "sabem", mas sabem também que é tudo de mentirinha.
Huck tratou da nossa ancestral desigualdade social e deu uns cascudos nessa gente "branca e rica da Faria Lima". Não há o que funcione melhor numa palestra, especialmente se você estiver falando para gente branca e rica da Faria Lima. Cuidando sempre para ser rápido e não atrasar o almoço, que o pessoal tem mais o que fazer.
Na economia digital, a retórica do abismo produz bons resultados. Seu campeão da semana foi o zero dois, nosso Winston Churchill caseiro, fazendo um comunicado, via Twitter, sobre suas intenções golpistas. Ao menos se pode dizer, a seu favor, que é um golpista transparente. Rendeu uma boa quantidade de artigos e manifestações de horror, depois que o episódio da censura, na Bienal do Rio de Janeiro, perdeu interesse.
Tudo isso é muito instigante, e confesso não ver muito problema na tagarelice digital, cuja lógica é e sempre será uma mistura de raiva, exagero e irrelevância. O preocupante é quando se vê gente séria, país afora, reproduzir essa lógica.
Gente que tem responsabilidade, na vida empresarial, na esfera pública ou na mídia profissional.
O problema da síndrome de abismo é que ela produz uma permanente sensação de incapacidade coletiva. Primeiro, por jogar continuamente informação irrelevante e toxina política no debate e no sistema de escolha pública. Afinal, é disso que trata a política. Organizar a vida coletiva, gerar consensos possíveis, a partir da expressão da liberdade de cada um e do exercício do bom senso. Ou não?
Em segundo lugar, por uma lógica exposta por Barack Obama, no discurso proferido à comunidade afro-americana, nos 50 anos da marcha de Selma. Se não tivermos a capacidade de reconhecer o longo caminho que já percorremos, e tudo o quanto conquistamos, para chegar até aqui, perdemos a confiança em nossa condição de agência. Obama, como quase sempre, acertou na mosca.
É assim com o Brasil. Em meio à turbulência, soubemos conduzir um programa de reformas, da PEC do Teto, passando pela reforma trabalhista, até a reforma da Previdência. É isso que fez o país atingir a taxa básica de juros mais baixa da série histórica, confrontar o "rentismo", ter uma perspectiva objetiva de retomada do crescimento.
E mais importante: encarar a realidade de um país quebrado, cujo orçamento prevê investir míseros 0,3% do PIB em 2020, ainda que se recuse (e essa é a boa notícia) a varrer seu fracasso para debaixo do tapete. Encarar com alguma transparência o seu conflito distributivo, como bem pontuou a economista Ana Carla Abrão, e ter alguma consciência de que, para avançar, há ainda um difícil caminho de reformas pela frente.
Um país que soube preservar suas instituições, apesar da intensa torcida em contrário. Cansei de escrever dizendo que a democracia iria filtrar adequadamente a chamada "agenda conservadora" com a qual Bolsonaro se elegeu. Decantar, depurar, moderar, os verbos podem variar a gosto. O que vemos, com ótimo registro feito na Folha, é que a tal agenda simplesmente não anda no Congresso. Não anda nem irá andar. O que andou, neste ano, no Supremo, foi a criminalização da homofobia.
A solução para a síndrome do abismo não é nem o ufanismo ingênuo nem a raiva política. É o cultivo de um paciente senso de realidade. A sabedoria de escolher não apenas o que fazer, mas também —e talvez especialmente— o que não fazer. A ideia patética, por exemplo, que circulou nas cercanias do Palácio da Alvorada, dias atrás, de romper com a âncora fiscal criada na regra do teto de gastos.
Talvez o maior risco seja imaginar que o relativo sucesso da reforma da Previdência se repetirá, como regra, no período que vem pela frente. O tema previdenciário adquiriu aspecto de urgência, amadureceu ao longo de três anos e sempre envolveu um nível de conflito distributivo muito inferior, por exemplo, ao que será enfrentado na reforma tributária, cujo debate nem sequer se iniciou de verdade.
O risco, no fundo, não é o abismo, mas a planície semiárida. A procrastinação tão ao gosto brasileiro, da qual precisamos fugir como o diabo foge da cruz.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Um comentário:
Prezaado Dr. Fernando....Excelente Artigo...
Postar um comentário