- Valor Econômico
Fosso separa público da bienal e mutirões de desempregados
Passados 11 meses desde as eleições presidenciais, o Estado mais bolsonarista da região mais rica do país parecia ter entrado em ebulição no fim de semana passado.
Na sexta-feira, Wilson Witzel, foi hostilizado num festival de cerveja, que os organizadores, para assegurar sua condição globalizada, divulgam com o nome em francês. O governador do Rio passeou pelos stands sob vaias e gritos de 'fascista". Duas semanas antes era ele o chefe da agitação ao descer de um helicóptero, dando socos no ar para comemorar a morte, por um atirador de elite, do estudante William da Silva, sequestrador de um ônibus na ponte Rio-Niterói.
No dia seguinte, teria início uma guerra de liminares, que chegaria ao Supremo Tribunal Federal. Estava em jogo a garantia de que uma história em quadrinhos encampada com um beijo gay e alvo de censura pelo prefeito Marcelo Crivella, pudesse ser comercializada na Bienal do Livro. Um campeão de audiência juvenil distribuiu 14 mil livros com temática LGBT e ganhou ainda mais adeptos. No dia da independência, a Bienal comemorou o recorde de visitação - e vendas - com um mar de gente vestida de preto.
Uma semana antes os alunos da unidade do Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica) no Maracanã, zona norte do Rio, puseram para correr com um jogral ("Ninguém vai fazer mal ao interventor, mas ele vai embora agora"), um diretor nomeado pelo MEC sob alegação de que pairavam suspeitas sobre o processo eleitoral da instituição para o preenchimento do cargo.
Depois de colocar seus três ex-governadores da cadeia (Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão e Anthony Garotinho), o Rio se tornou o Estado que concentra maior poder político nas mãos da direita. Além de berço do bolsonarismo, tem um governador eleito na esteira do presidente da República com um discurso linha dura na segurança e um prefeito de capital que radicalizou o obscurantismo dos costumes.
Vem daí a avaliação de que o Rio pode ser também, o berço da reação. Estudioso de política eleitoral, Jairo Nicolau, vê, porém, nas três manifestações, a insatisfação de quem já era contrário ao trio de governantes num Estado em que Jair Bolsonaro ganhou, de forma inédita, da Baixada Fluminense ao Leblon. Foi a primeira vez que o professor da FGV viu o porteiro de seu prédio, na Lagoa, zona sul, e a maioria dos moradores usarem as mesmas cores no dia da eleição.
Isso não torna as manifestações desimportantes nem desnecessárias mas estão longe de mobilizar o eleitor arrependido ou a massa de desvalidos que, se não foi produzida pelo bolsonarismo, não é por ele resgatada. Nicolau confere a Bolsonaro o título de primeiro presidente que conseguiu se eleger a despeito de não ter sido vitorioso na metade do eleitorado que ganha até dois salários mínimos. Apesar disso, a oposição e aqueles que não são nem tão oposição assim, custam a se mostrar sintonizados com a realidade dessa parcela do eleitorado.
Atribui-se a dom Hélder Câmara a melhor definição sobre a prevalência do multiculturalismo que já arrebentou a política no mundo inteiro. Indagado sobre o que achava do topless, o velho cardeal, falecido há 20 anos, teria dito: "Meu filho, eu me preocupo com quem não tem roupa para usar, mas com quem tem para tirar, não me importo".
Dom Hélder ainda estava na ativa quando o Brasil entrou em ebulição nos anos 1980. Foi a década em que uma passeata do "Movimento contra o Desemprego e a Carestia" deixou no seu rastro lojas e supermercados saqueados além das grades derrubadas do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.
Foi também naqueles tumultuados anos 1980 que o Rio pegou fogo, depois de acordar com uma tarifa de ônibus 49% mais alta, graças a uma liminar conseguida pelo sindicato das empresas do setor. Aquele 30 de junho de 1987 só incendiou às 10h30 quando uma senhora, que o "Jornal do Brasil" identificou com uma "preta de blusa branca e saia florida" teve seus cruzeiros rejeitados para pagar uma passagem cobrada em cruzados, moeda vigente desde o ano anterior. A solidariedade dos demais passageiros terminou na depredação de 171 ônibus, dos quais 23 foram incendiados.
É por fagulhas como esta que surpreende a sucessão de mutirões pacíficos a reunir milhares de pessoas, nas grandes cidades do país, em busca de emprego. Muitos deles não conseguem preencher nem a metade das vagas por que os candidatos não cumprem exigências de qualificação, como ensino médio completo e noções básicas de informática. Depois de passar a madrugada em pé, resistindo ao relento e aos fura-fila, essas multidões voltam para casa sem emprego e sem provocar distúrbios.
Wanderley Guilherme dos Santos já ensinou que o custo da mobilização - e do fracasso - dessas multidões é muito mais alto do que o daqueles que a chamam por rede social, depois postam suas fotos e alimentam as discussões na tribuna da Câmara, na mesa de bar ou no Twitter. É no fosso entre esses dois brasis que mora a ameaça, não nos tuítes do vereador Carlos Bolsonaro.
João Guilherme Vargas Neto, consultor sindical com cinco décadas de mobilização na algibeira, vê dois outros desestímulos à arregimentação. O primeiro é o colchão social (aposentadoria, BPC, bolsa-família, seguro-desemprego, auxílio-doença) que, apesar de estar puído e ameaçado pelos planos de Paulo Guedes, ainda oferece um amortecimento ausente nos anos 1980. O outro é o medo difuso provocado por imagens como a do atirador de elite da ponte Rio-Niterói e que encontra ressonância no aumento da letalidade policial.
Inexistente para as plateias do festival da cerveja ou da bienal e mesmo para os alunos da elite do ensino público, o medo é latente para as multidões de pobres desempregados. Pelo perfil das únicas reais sublevações vistas em São Paulo nas últimas semanas - as da Cracolândia, no centro da cidade -, só os nóias, com a retaguarda do PCC, parecem dispostos a pagar o preço. Mas é apenas na ficção de Bacurau, filme celebrado pela esquerda, que o oprimido alucinado vence. Na vida real, a mobilização contra o arbítrio e a desigualdade depende do esclarecimento e da política.
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