- Valor Econômico
Simulações do Ibre indicam que “é possível e provável” que a dívida pública se estabilize nos próximos anos até mesmo com déficits primários
Um fenômeno brasileiro recente ainda não foi devidamente explicado pelos economistas. Hoje, existe quase um consenso de que houve uma mudança estrutural da taxa de juros no Brasil. Três anos atrás, a taxa básica (Selic) estava em 14,25% ao ano. Hoje, está em 5,5% ao ano, com perspectiva de cair ainda mais.
No mesmo período, o setor público brasileiro continuou registrando elevados déficits primários em suas contas, com crescimento da dívida bruta, que chegou perto de 80% do Produto Interno Bruto (PIB). A perspectiva é de que a dívida continuará em elevação e o setor público com déficit primário nos próximos anos. Como foi possível os juros caírem tanto com este dramático quadro fiscal?
A mudança dos juros no Brasil está sendo considerada estrutural porque ninguém acredita que a Selic voltará ao patamar de dois dígitos em horizonte previsível. Pelo menos até agora não houve manifestação contrária, embora alguns desconfiem que taxa de juros tão baixa no Brasil não deve perdurar por muito tempo.
O fenômeno ainda não explicado e impressionante, pelo curto prazo em que ocorreu e pelas condições fiscais, terá consequências notáveis. Ele tem levado a uma taxa muito baixa de financiamento da dívida pública. O Tesouro Nacional está vendendo títulos com taxa de juro real de 2,6% ao ano (NTNB), com prazo de cinco anos, o que era inimaginável há pouco tempo.
Como resultado do atual fenômeno de queda dos juros, o setor público brasileiro pagará, neste ano, possivelmente, uma conta de juros semelhante ao que pagava quando a dívida pública era de 51% a 53% do PIB, estimou o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, na semana passada, quando comentou o resultado fiscal de agosto. No fim daquele mês, a dívida bruta do setor público estava em 79,8% do PIB, de acordo com o Banco Central.
Na visão de Mansueto, se o governo conseguir acelerar as privatizações de empresas estatais e garantir que o BNDES pague antecipadamente os empréstimos que recebeu do Tesouro, o cenário para a trajetória da dívida será ainda mais benigno.
O secretário observou que, no atual cenário, os economistas de vários bancos estimam que para estabilizar a dívida como proporção do PIB é necessário um superávit primário de apenas 1% do PIB. Em passado não muito distante, o entendimento que predominava no mercado era que o setor público teria que fazer um superávit primário de 2,5% do PIB ou, até mesmo, de 3% do PIB.
Em artigo publicado nesta semana no Valor, o economista Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas, concorda que a redução da Selic, com a consequente diminuição das taxas de juros da dívida, “resulta na redução do resultado primário de equilíbrio necessário para estabilizar a dívida”. As simulações que ele fez indicam que “é possível e provável” que a dívida pública se estabilize nos próximos anos até mesmo com déficits primários.
Pires, que foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, no início de 2016, destaca, no artigo, que a melhor métrica para avaliar o quadro fiscal é a do resultado estrutural, pois o resultado primário é contaminado por uma série de efeitos de curto prazo, como eventos não recorrentes e pelo ciclo econômico que está desfavorável. O resultado estrutural, observa, expurga esses efeitos e permite uma visão da condição de longo prazo da política fiscal.
O resultado primário estrutural de 2018, apurado pelo governo, indicou um déficit primário de 0,7% do PIB. Considerando a evolução da política fiscal em 2019 e o Orçamento da União para 2020, as estimativas de Pires apontam que o resultado estrutural ficará em um déficit de 0,29% do PIB. Na metodologia divulgada pelo Observatório de Política Fiscal, calculada pelo economista Bráulio Borges, a estimativa é que, em 2020, o resultado primário estrutural seja positivo em 0,15% do PIB.
Diante deste cenário, Pires considera que uma das prioridades do governo “deveria ser recuperar a economia e fechar o hiato do produto para o resultado fiscal melhorar de forma mais evidente”. Para ele, o debate se volta para a margem de segurança que o governo deseja obter e a velocidade que deve impor para a queda da dívida nos próximos anos.
“É recomendável trabalhar com uma margem de segurança para absorver choques no futuro, mas não há nenhuma necessidade de manter um ajuste criando uma situação de paralisia das atividades governamentais e baixo investimento”, diz no artigo.
Embora acredite que a situação mudou para melhor, o secretário do Tesouro tem outra visão do que deve ser feito. Ele lembrou, na semana passada, que a despesa primária da União era equivalente a 19,9% do PIB em 2016 e que deve fechar este ano em 19,7% do PIB, ou seja, só 0,2 ponto percentual abaixo. “Dado que eu quero, até 2026, cortar despesas equivalentes a 4% do PIB, 90% do ajuste fiscal ainda precisa ser feito”, afirmou.
Mansueto disse que a dívida pública está em quase 80% do PIB, patamar muito elevado em comparação com os demais países emergentes e que a projeção do governo é que ela continuará crescendo até 2022. “Em um cenário como esse, o nosso desafio não é ficar com uma dívida tão alta, mas fazer com que ela caia”, afirmou. “Se ficarmos com dívida elevada e, daqui a dois ou três anos tivermos algum problema, não teremos capacidade de fazer política fiscal anticíclica.”
Para o secretário, se a dívida bruta estivesse em torno de 55% do PIB, o governo teria espaço para aumentar o endividamento e fazer política anticíclica. “Mas esse espaço no Brasil desapareceu, justamente porque está com um nível de endividamento muito alto.” Além de alta, a dívida tem um prazo médio muito curto.
Ele lembrou que os Estados ainda estão com um ajuste fiscal a fazer. “Quando tivermos um cenário mais claro da dívida em queda, aí sim poderemos discutir a questão de investimentos e cenários fiscais diferentes”, afirmou.
São duas visões distintas sobre o que fazer na área fiscal daqui para frente, em um cenário muito benigno de inflação e juros baixos, pela primeira vez em muitos anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário