- O Estado de S.Paulo
É preciso compreender os detalhes da PEC 186 antes de aprovar o texto do jeito que está
A sociedade brasileira ficou mais atenta à difícil situação das contas públicas depois de enfrentar uma das maiores contrações econômicas da nossa História. Paralelamente, vem ganhando mais atenção a agenda legislativa voltada para as condições financeiras do Estado, tornando-o mais capacitado para investir e entregar serviços públicos de qualidade.
As medidas anunciadas pelo governo para enfrentar o desequilíbrio fiscal devem ser analisadas com cautela e sem maiores impulsos ideológicos. Corre-se o risco de criar um estado de emergência fiscal que criminalizaria o avanço de qualquer agenda social no Congresso. Paradoxalmente, o “pacotaço” endossado pela equipe econômica se choca com a própria agenda do Poder Executivo na área da saúde e do emprego.
Para lidar com os desajustes no Orçamento o Ministério da Economia faz uma aposta do tipo all-in – tudo ou nada – no teto de gastos, introduzido na Constituição pelo Congresso em 2016 para limitar o crescimento da despesa pública. A regra do jogo é simples: se a despesa crescer a um ritmo acima da inflação, o poder público ficará submetido a um conjunto de medidas de controle de gastos conhecidas como “gatilhos fiscais”.
Esse teto ainda não foi rompido, motivando o Ministério da Economia a elaborar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 186. Em linhas gerais, cria-se um “estado de emergência fiscal” para antecipar a vigência dos “gatilhos fiscais” do teto de gastos. Em outras palavras, o setor público não poderia contratar funcionários – exceto para repor aposentadorias – e tampouco criar outras despesas obrigatórias e incentivos tributários nessa situação de emergência fiscal.
Note-se que as economias orçamentárias em áreas cuja atuação estatal é ineficiente não poderão ser utilizadas para financiar novos gastos obrigatórios em setores sociais mais prioritários. Nesse novo regime fiscal, que deve vigorar por vários anos, o presidente da República ou os chefes dos Poderes Legislativo e Judiciário que autorizarem novas despesas ou incentivos fiscais estarão descumprindo a Constituição e, portanto, cometerão crime de responsabilidade e contra as finanças públicas.
As consequências são graves. A gestão fiscal ficará mais arriscada para o burocrata que corriqueiramente autoriza despesas sob a sombra da fiscalização do Tribunal de Contas da União. Além disso, a medida impedirá o avanço de novos programas na área social, tendo em vista que as políticas públicas da educação, da saúde e da segurança, por exemplo, geralmente envolvem a criação de despesas obrigatórias.
Economistas e políticos que se vêm manifestando a favor da PEC 186 não percebem que a ideologia prejudica uma visão imparcial do caminho encantado apresentado pela equipe econômica. Ignora-se por completo a literatura internacional especializada em finanças públicas: governos sempre ponderam custos políticos associados ao descumprimento das regras fiscais, ignorando-as quando há engessamento elevado da discricionariedade política na gestão fiscal. No caso brasileiro, cabe lembrar que um presidente da República já sofreu impeachment por ter negligenciado regras fiscais.
Na prática, a PEC 186 impede o avanço da agenda social apoiada pelo governo. Trata-se de uma estratégia do tipo “tocar fogo na casa para assar o leitão” – expressão que serviu de título para meu último artigo neste espaço.
Por mais incoerente que possa parecer, a PEC 186 travaria o desenvolvimento do programa Médicos pelo Brasil, criado pela Medida Provisória (MP) n.º 890. Na semana passada, o Parlamento aprovou essa iniciativa do governo, que aumentará o atual número de 6 mil médicos para atender comunidades em áreas afastadas para cerca de 45 mil. Afinal, são novas despesas obrigatórias que não poderiam ser realizadas durante a vigência do estado de emergência fiscal.
Na área do emprego também existem incoerências. A MP 905 pretende estimular a contratação de jovens isentando as empresas de pagarem tributos sobre a folha de salários. No entanto, o presidente da República não poderá criar renúncias tributárias enquanto vigorar a emergência fiscal da PEC 186.
Feitos os alertas, é preciso reconhecer a urgente necessidade de controlar o crescimento dos gastos para que os agentes econômicos possam restabelecer a confiança na sustentabilidade da dívida pública. Uma boa expectativa em relação ao equilíbrio das contas públicas induz à redução de juros e pode funcionar como fator de atração dos investimentos públicos e privados necessários para dinamizar a economia brasileira. Emprego e renda são consequências de uma economia dinâmica e pujante.
Mais ainda, o processo de consolidação fiscal não deve ir pelo caminho das sanções administrativas que impedem o avanço da agenda social. A crise econômica deixou sequelas graves na sociedade brasileira, aumentando as desigualdades e a pobreza extrema. As manifestações que ocorrem na América Latina, especialmente no Chile, devem ser consideradas parte do contexto.
As decisões políticas – no Brasil e no mundo – são muitas vezes guiadas por motivações ideológicas, sejam elas adotadas em favor de políticas fiscais expansionistas ou contracionistas. Contudo o desequilíbrio das contas públicas não justifica um estado de emergência fiscal incoerente, fruto de rompantes ideológicos que dispensam uma análise consistente e transparente dos cortes orçamentários pretendidos pelo governo.
Enfim, é preciso compreender os detalhes da PEC 186. Aprovar o texto do jeito que está significa criminalizar a política fiscal. O governo não poderá avançar com boa parte da sua agenda, como desonerar a folha de salários das empresas. O Congresso não poderá aprovar programas da sua agenda social. E mais um presidente da República poderá sofrer impeachment por criar despesas não autorizadas em lei.
*Senador (PSDB-SP)
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