- Folha de S. Paulo \ Ilustríssima
É hora dos imunizados contra o autoritarismo se darem as mãos, em vez de distribuir pontapés
O jeito é acenar de longe, na linha do adeuzinho da Angela Merkel, trabalhar remotamente, vide nos Estados Unidos, e mesmo viver à distância, como os italianos.
Um ente biológico está sacudindo mais o modo de vida contemporâneo do que toda a temida tecnologia. Falava-se tanto em sociedade digital, que prescindiria de contato humano direto, pois a noção entrou em fase de testes.
Não só coronavírus isola. A emergência sanitária realça a distância criada por dissensos políticos, o convívio restrito a bolhas digitais autorreferidas. As novas fronteiras são físicas, nada de beijo, abraço, aperto de mão. Mas não são novas, os cartazes dos protestos de 2013 já diziam: “acabou o amor”.
Desde então, as rodinhas políticas se imunizaram, expurgando os contaminados pelo vírus rival. E se retroalimentam com mensagens de reforço contra o Bozo ou a favor do Mito. O autoconfinamento criou realidades paralelas à esquerda e à direita, cada lado com seus sites, facebooks, twitters, slogans, heróis e inimigos. Uma foge da outra como bactéria de antibiótico.
Em meio às febres opostas, calhou a orientação do ministro da Saúde, afinal membro do governo Bolsonaro, de cumprimentar chutando o sapato do interlocutor. O pontapé combina mais com os tempos do que a proverbial simpatia brasileira.
As relações entre quem votou ou anulou o voto (não é o mesmo, mas deu no mesmo) e quem jamais cogitou votar no presidente são de ressentimento, evitação ou ataque. Os dois lados chamaram manifestações, como fazem desde o processo de impeachment de Dilma, na expectativa de que a demografia virtual da respectiva bolha se materializasse inteira na rua. Mas entre prometer e ir há a vida com suas intercorrências.
Num ato projetivo, o presidente chamou a pandemia médica de “fantasia”. É que o vírus atrapalhava a concretização de sua própria fantasia autoritária nos protestos. Ao seu costume, instituiu o caos: convocou, desconvocou, tornou a convocar, para, ao fim, desconvocar oficialmente, em cadeia de rádio e TV, a manifestação que afirmou nunca ter convocado.
Agiu tarde. Antes do cancelamento, o medo da doença vencera a esperança militante. A guerra política perdeu para a virótica no Twitter.
Nos preparativos para o que não houve estão as digitais da comunidade bolsonarista. Em vídeo da Lux Brasil, de amadorismo técnico proposital, um guerreiro cristão medieval, montado, com escudo e Bandeira Nacional, convocava os “patriotas” contra “os comunistas e traidores da pátria”.
A combinação de paranoia política e desastre estético viralizou. Por hora, o Lux Brasil chegou a mais gente que o coronavírus.
Na bolha contrária, a reação foi riso ou pânico, ambos inadequados.
O riso é despropositado porque o Lux Brasil não é caso esdrúxulo, há muitos grupos semelhantes e contam com a simpatia de ninguém menos que o presidente da República. Escarnecer alivia, mas não esclarece o que importa: quem organiza e financia estes grupos antidemocráticos. E operam dentro da legalidade?
São movimentos reacionários, seja pela utopia passadista, seja por ressuscitar a “ameaça comunista” da Guerra Fria. Mas é equívoco supor que representem todo o espectro da mobilização antipetista.
Os milhões nas ruas em 2015 contra Dilma incluíam esta gente. Mas ali estavam também grupos conservadores, em nome dos valores tradicionais e da moralidade pública, e grupos liberais, pró-livre mercado. Esta oposição democrática de rua se uniu a grupos reacionários, sob o manto patriota e em nome da luta contra o surto petista.
Em 2018, votaram no seu menos pior para vencer inimigo comum. E venceram. Mas, afora o antipetismo, não havia pauta substantiva que os unisse aos reacionários e agora muitos se dão conta de que confundiram veneno com remédio.
A questão é se os democráticos vão seguir na bolha antipetista com os reacionários ou se a explodirão, em busca de alianças civilizadas.
Para que esta bolha estoure, a outra também terá que rebentar. Será preciso um gesto à esquerda, como o do primeiro ministro holandês, cuja urbanidade suplantou a precaução antivirótica: esquecendo do risco, estendeu a mão.
A crise médica irmana todos os solidários com seus semelhantes, incluídos adversários políticos. A ocasião crítica facilita romper o isolamento político. Hora dos imunizados contra o autoritarismo se darem as mãos, em vez de distribuir pontapés. A democracia brasileira precisa urgentemente desta terapêutica.
*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
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