- O Globo
Era do coronavírus deve abrir uma caixa de pandora. Mudamos nós, mudou nossa percepção de espaço, de tempo
Não faz tanto tempo assim. Passaram-se só quatro meses desde o 17 de novembro último, cuja única notícia internacional relevante era a crise institucional na vizinha Bolívia, e no Brasil a festa do Flamengo em cavalgada rumo ao heptacampeonato nacional. Foi naquele domingão que um cidadão chinês de 55 anos deu entrada num hospital da província de Hubei infectado por uma mutação viral então ainda desconhecida.
Esta semana a China conseguiu apontar o cidadão de Hubei como o “paciente número 1” da atual pandemia global da Covid-19. Entre aquele dia e hoje o colosso comunista parece ter contido o pico da epidemia sem afrouxar as rédeas do regime. Dos mais de três mil mortos e perto de 85 mil infectados oficiais desde novembro, apenas 22 casos novos e oito mortes teriam ocorrido dois dias atrás. Mas a semente da desconfiança popular em relação à narrativa do governo está plantada.
No resto do mundo a era do coronavírus também deve abrir uma caixa de pandora. Mudamos nós, mudou nossa percepção de espaço, de tempo e de relações humanas. De um dia para outro, comportamentos sociais enraizados perderam naturalidade. Começamos a nos sentir estrangeiros em relação a nós mesmos.
Em tempos recentes, só a devastadora disseminação do vírus da Aids na década de 1980 gerou insegurança e incompreensão semelhantes, agravada pela recusa dos governantes da época a lidar com o problema. Ficou na biografia do presidente americano Ronald Reagan a mancha de só ter liberado verbas federais para combate e pesquisa da Aids quando toda uma geração de jovens já havia definhado, carcomida pelo HIV.
Também hoje não faltam governantes que no início da epidemia, e em graus variados, inflaram a eficácia de suas indecisões, desdenharam o saber dos cientistas, suprimiram informação, escamotearam a verdade. Em regimes autoritários como os da China, Rússia e Irã, foi o esperado. Também houve falhas catastróficas em democracias plenas. “Estamos arruinados. A Itália nos abandonou”, constatou o ator Luca Franzese em vídeo postado de sua casa na Ligúria, onde estava confinado há um dia ao lado da irmã morta, aguardando uma solução das autoridades locais. A Itália, como se sabe, está de porteiras fechadas para o mundo, tentando debelar o maior número de vítimas do coronavírus — proporcionalmente, maior do que o da China.
Em Washington e Brasília, os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro se viram acossados por uma realidade indigesta, fora de hora, resistente a seus tuítes negacionistas. Ambos perderam valiosos meses de vantagem sobre a China para preparar a sociedade e adequar a estrutura pública à inexorável nacionalização do vírus. Só despertaram da visão de bunker quando o contágio chegou ao mercado financeiro.
No mundo todo pessoas normais estocam botijões de água, papel higiênico ou comida diante do desconhecido ou de um apocalipse imaginário. Algumas delas são apenas previdentes, outras mais compulsivas. Esse comportamento de massas vem sendo mapeado há vários séculos. Mas sempre há novidades, e no surto atual a mais extremada vem dos Estados Unidos.
Ali, um dos planos B de sobrevivência à Covid-19 mais radicais está em silos de 15 andares de profundidade cavados pelo governo americano durante a Guerra Fria e transformados em condomínio de luxo por empreendedores que conhecem sua clientela. Estes silos abrigavam mísseis intercontinentais Atlas capazes de cruzar continentes, tornaram-se obsoletos e foram arrematados anos atrás por Larry Hall, do Kansas. São bunkers em forma cilíndrica e paredes de concreto capazes de suportar um ataque nuclear, fornecimento ilimitado de energia, filtros de ar de gradação militar, um suprimento de água e alimentos para cinco anos de ocupação. Sem falar em amenidades óbvias como piscina, sala de cinema, parquinho para pets, processador de lixo. Cada unidade de 83 metros quadrados custa o equivalente a R$ 7,5 milhões, as mais espaçosas saem por R$ 22 milhões. Segundo reportagem de Chris Iovenko na revista on-line “Vox”, o comprador mais recente viu o anúncio do empreendimento este mês e quatro dias depois comprou uma das últimas unidades ainda disponíveis.
Trump e Bolsonaro certamente não cogitam se refugiar num desses Survival Condos. Mas ambos exercem o poder com uma mentalidade individualizada de bunker. Estão na contramão da história: para sobreviver como indivíduos e como espécie dependemos do conjunto, da comunidade. A vida sem os outros, ao contrário do que disse Sartre, é um inferno.
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