• Bolsonaro ultrapassa limites e desafia o estado de direito – Editorial | O Globo
Contrário ao isolamento social, presidente vai a manifestação em que é defendido golpe militar
O presidente Bolsonaro tem feito jus à biografia de um político radical que construiu a carreira na bancada do baixo clero na Câmara sem nunca ter se preocupado em se distanciar do lado mais escuro da ditadura militar. Eleito legitimamente presidente da República, Jair Bolsonaro tem sido coerente com seu passado e, à medida que se sente legalmente tolhido a praticar um enfrentamento sem base científica da epidemia da Covid-19, radicaliza, tendo chegado a um ponto perigoso ontem, ao participar de manifestação em Brasília em que se pregou golpe militar.
Bolsonaro foi além do desrespeito a indicações dos especialistas para se evitar a propagação do vírus, o que tem feito com sistemática há semanas, contra a posição do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e agora do seu substituto, Nelson Teich, que acertadamente tenta montar um sistema de aferição da evolução da epidemia, para que sejam tomadas decisões bem fundamentadas, e não como deseja Bolsonaro, preocupado apenas com seu futuro político, e não com a saúde da população.
Aboletado numa caminhonete, o presidente fez um pronunciamento no estilo do populismo mais tosco: “(...)vocês estão aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil. Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil (...). Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder (...) Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro (...)”. Este discurso, na boca de um presidente, representa uma agressão ao estado democrático de direito.
Ainda em Brasília, Bolsonaro, de volta ao Planalto, subiu a rampa e do alto apontou para a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), no outro lado da Praça dos Três Poderes, enquanto lamentava que a Corte tenha decidido que estados e municípios podem baixar medidas que considerem necessárias para conter a marcha do Sars-CoV-2 — “Tem prefeitos aí que cometeram barbaridades”. Entenda-se por “barbaridades” decretar fechamento de comércio, de praias, sempre com a preocupação correta de impedir aglomerações e, assim, conter a propagação do vírus.
A radicalização do discurso de Bolsonaro é acompanhada pela mobilização de milícias virtuais no ataque a alvos do presidente, entre eles, o deputado Rodrigo Maia, que preside a Câmara e atua, junto com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para o Legislativo aprovar medidas necessárias à compensação dos efeitos da grande recessão que está às portas na economia e no campo social.
Bolsonaro demonstra conviver mal com os freios e contrapesos de uma democracia representativa. Desde o início do seu governo ele já teve várias oportunidades de aprender que Legislativo e Judiciário existem para atuar ao lado do Executivo de forma harmônica, mas que existem barreiras institucionais para conter um poder que tente se sobrepor aos outros. Caso do Executivo com ele na Presidência. E terá de ser sempre assim.
• Aumentam os riscos para o México, onde a economia deve recuar 6,6% - Editorial | O Globo
País se encontra no estágio inicial da pandemia, e número de mortes cresce em progressão geométrica
Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, integra o pequeno clube global de líderes políticos que minimizam a pandemia do novo coronavírus. Alguns, aparentemente, decidiram sair do grupo. É o caso de Donald Trump (EUA) e de Boris Johnson (Reino Unido), que está em recuperação da Covid-19. Outros continuam, como Jair Bolsonaro e os ditadores venezuelano Nicolás Maduro e bielorrusso Alexander Lukashenko.
Obrador se justifica recorrendo à História recente — não quer repetir 2009. Naquele ano seu adversário Felipe Calderón governava o país, quando ocorreram sete casos de contaminação por uma cepa viral então desconhecida, identificada depois como “gripe A H1N1”. Os riscos de pandemia levaram Calderón a decretar estado de emergência, com fechamento de áreas turísticas. O México terminou aquele ano com 1.172 mortes pela gripe, 70,7 mil casos confirmados e uma queda de 0,7% no Produto Interno Bruto.
Obrador quer enfrentar o novo coronavírus mostrando ao eleitorado que é diferente dos antecessores, e acabou num labirinto. Num dia anuncia ter entregue aos cientistas a política sanitária, com quarentena nacional até o fim de maio. Num outro escandaliza epidemiologistas ao minimizar os riscos, encomendar poções “milagrosas” e passear exibindo um trevo de seis folhas que, ele garante, vai protegê-lo da Covid-19.
Adia medidas de socorro aos estados, empresas e trabalhadores, enquanto procura a moldura adequada para enquadrá-las na sua cruzada política, cujo objetivo é conquistar maioria parlamentar nas eleições do próximo ano. Mas, sem plano consistente para a crise, reforça a impressão de conduzir o México a uma situação pior que a de 2009.
O país se encontra no estágio inicial da pandemia, e os casos fatais aumentam em progressão geométrica. O cenário econômico é o pior entre os maiores países da América Latina. O Fundo Monetário Internacional prevê que o México vai encerrar 2020 com uma queda de 6,6% no PIB, a maior depois da Venezuela (-15% no sétimo ano de depressão).
A maior empresa do país, a estatal Pemex, está “em dificuldades”, necessitando urgente aporte de recursos governamentais, segundo bancos como BBVA e agências de risco como a Fitch. O turismo está fechado pela pandemia, e o petróleo mexicano oscila entre 13 e 14 dólares o barril, cotação mais baixa desde os anos 30 do século passado. Obrador parece ter perdido a bússola, e, sem ela, não encontra a saída do labirinto que construiu.
• Vítimas em casa – Editorial | Folha de S. Paulo
Em alta na quarentena, violência contra mulher exige meios de denúncia e apoio
O isolamento social, mesmo que necessário, potencializa conflitos preexistentes. Assim se dá no caso da violência contra a mulher. Números recém-apurados trazem à luz o agravamento da violência de gênero no país, em suas diversas modalidades —física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Assassinatos de mulheres em casa quase dobraram (de 9 para 16) no estado de São Paulo no período de quarentena, entre 24 de março a 13 de abril, segundo constatou a Folha a partir de boletins de ocorrência. Entre os fatores agravantes do quadro estão o aumento de consumo de bebida alcoólica e a perda de renda de famílias.
A tendência é mundial. Dados da ONU mostram que agressões domésticas aumentaram entre 25% e 33% em França, Argentina, Singapura e Chipre. Na Espanha, pedidos de ajuda por telefone nesses casos aumentaram 18% depois da imposição do confinamento.
Como no Brasil os registros em geral demandam denúncia presencial por parte das vítimas, os números de ocorrências caíram em diversos estados durante a quarentena. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela que a queda foi verificada, ao menos, em Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Acre e Ceará.
Não há, entretanto, indício de que a violência tenha diminuído. Pelo contrário: relatos de brigas de casais feitos por terceiros em redes sociais cresceram 431% no isolamento, informa o estudo.
Pedidos de socorro vindos do interior de residências tiveram aumento de 19,8%, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública paulista. São pistas que revelam a ponta de um provável iceberg.
Combater a violência contra a mulher requer, de um lado, fortalecimento e expansão de redes de apoio.
Diversificar os canais de denúncia —por telefone e internet— é essencial. Em boa hora, a Polícia Civil permitiu neste mês que ocorrências dessa modalidade possam ser registradas em meio digital.
A Justiça precisa ser ágil em conceder medidas protetivas como o afastamento do agressor. Abrigos para vítimas devem ser ampliados.
Opções heterodoxas testadas em outros países podem servir de exemplo. A França mantêm centros de aconselhamento em supermercados; a Espanha criou uma senha secreta para que mulheres busquem ajuda nas farmácias.
Violência doméstica constitui uma pandemia ofuscada pela subnotificação, comum a esses crimes, pelo isolamento social e pela insuficiência das redes de apoio. Seu enfrentamento igualmente exige ações de naturezas diversas.
• Os poderes do BC – Editorial | Folha de S. Paulo
Órgão deve usar com parcimônia autorização para comprar papéis; juros podem cair
Em meio ao combate à pandemia do novo coronavírus, o Banco Central está prestes a ganhar novos e controversos poderes, por meio da proposta de emenda constitucional que estabelece normas orçamentárias e financeiras especiais para o período de calamidade.
Recém-aprovada com alterações pelo Senado e enviada de volta à Câmara dos Deputados, a chamada PEC do Orçamento de Guerra estabelece, entre outras inovações, que o BC poderá comprar em mercado títulos públicos e algumas categorias de papéis privados —para assegurar que a intermediação de crédito continue funcionando.
Ao longo de março, observou-se em diversos países a interrupção generalizada de financiamentos, bloqueando uma veia essencial para a dinâmica da economia, em consequência das medidas restritivas impostas pelos governos para o combate à disseminação do vírus.
Mesmo empresas de alta qualidade tiveram interrompido seu acesso ao mercado. Nesse contexto, os principais bancos centrais do mundo passaram a intervir para evitar o colapso financeiro e danos permanentes ao emprego e à renda.
Após levar seus juros a zero, o americano Federal Reserve reativou os mecanismos de atuação utilizados na crise de 2008.
O Brasil não está inovando nesse aspecto, portanto. Ainda assim, as prerrogativas a serem concedidas ao BC suscitam polêmica, sobretudo a possibilidade de compra de papéis privados, que cria brecha para favorecimentos indevidos.
O Senado, corretamente, restringiu o rol de papéis elegíveis e exigiu transparência diária nas eventuais transações, além de restringir a distribuição de dividendos no setor financeiro até dezembro.
Qualquer ação nessa frente deve primar pela parcimônia, mesmo porque o BC ainda dispõe de amplo espaço para utilizar seus meios tradicionais. Num regime de metas para a inflação, como o brasileiro, o instrumento principal é a taxa de juros, que ainda permanece em 3,75% ao ano.
Com a dívida pública em rápido crescimento devido às medidas de combate à crise e à queda da arrecadação, cortes adicionais da taxa Selic não deixam de carregar riscos. Mesmo assim, entende-se que a autoridade monetária deveria avançar mais nessa área.
O critério principal a seguir é a expectativa de inflação, que está em queda por causa da recessão esperada e permanece abaixo das metas até 2021. Assim, apesar das incertezas, há espaço para juros mais baixos. Fundamental agora é reduzir no que for possível o custo de capital para empresas e famílias.
- A Federação em funcionamento – Editorial | O Estado de S. Paulo
Decisão do STF sobre MP 926/2020 é uma importante defesa da Federação. Reconhece que o poder estatal não está centralizado na União
Por unanimidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que as disposições previstas na Medida Provisória (MP) 926/2020 devem respeitar a competência concorrente dos três níveis de governo da Federação em relação à saúde pública. “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”, diz o art. 23 da Carta Magna.
A MP 926/2020 modificou alguns trechos da Lei 13.979/2020, que trata das medidas para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Com a decisão, o Supremo assegurou que Estados e municípios podem tomar providências normativas e administrativas relativas à pandemia, devendo a União respeitar as medidas estaduais e municipais.
A decisão é uma importante defesa da Federação, ao preservar o âmbito de atuação de cada ente federativo. Trata-se do explícito reconhecimento de que o poder estatal não está inteiramente centralizado na União. Tal realidade institucional, tantas vezes mal compreendida, como se fosse mero elemento complicador da atuação do Estado, tem profundo caráter democrático, ao garantir, tanto quanto possível, a proximidade do cidadão com o poder.
Além disso, a distribuição de poder que se dá numa Federação permite, esse é um dos motivos que fundamentam sua existência, uma atuação estatal mais eficiente. É o que se vê agora, no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. O conhecimento das circunstâncias locais, tais como o número de pessoas infectadas, o tamanho da equipe médica e a disponibilidade de leitos de UTI e de equipamentos médicos, é decisivo para a correta dosagem das medidas de isolamento social e de restrição da atividade econômica. Uma medida única para todo o País seria um completo desastre, além de ineficiente em termos de saúde pública.
A decisão do plenário do Supremo confirmou a medida liminar do ministro Marco Aurélio, proferida no mês passado no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 6.341, ajuizada pelo PDT. Na ocasião, o ministro Marco Aurélio entendeu que a MP 926/2020 não afrontava a Constituição. “O que nela se contém não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios”, disse o relator. Negou, assim, o pedido do PDT para que alguns dispositivos da MP 926/2020 tivessem sua eficácia suspensa. “Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente”, lê-se na decisão liminar.
Na sessão de quarta-feira passada, o ministro Edson Fachin propôs explicitar que a União também pode legislar sobre saúde pública, com a condição de que o exercício desta competência resguarde a autonomia dos demais entes federativos. Com exceção do relator e do ministro Dias Toffoli, a maioria do plenário aderiu à proposta do ministro Edson Fachin, que faz referência direta ao artigo 3.º da Lei 13.979/2020. Nesse dispositivo, afirma-se que, “para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar no âmbito de suas competências”, entre outras medidas, o isolamento e a quarentena.
Na Adin 6.341, fica evidente que o exercício do poder dentro das respectivas competências não é empecilho para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. A atual situação emergencial não exige medidas de exceção ou poderes extraordinários, além dos limites legais. A melhor contribuição do Estado para o combate ao novo coronavírus é que cada esfera de governo – federal, estadual e municipal – atue dentro de suas competências, correspondentes a cada um dos Poderes. No caso, além de respeitar a competência do presidente da República de editar medidas provisórias, o STF cumpriu sua missão de defesa da Constituição, cujo primeiro artigo dispõe: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Eis o leito que toda a ação estatal no combate à pandemia deve seguir. Não há vacina ou remédio fora dele.
• A tecnologia contra o vírus – Editorial | O Estado de S. Paulo
Ela permite que continuem as relações socioeconômicas e pode salvar vidas no front
Além de confrontar a humanidade, em nível pessoal e civilizacional, um dos efeitos da pandemia é transportar o futuro de um horizonte longínquo para o aqui e agora. Com o confinamento generalizado, a sociedade está sofrendo um choque de digitalização. Mas enquanto o mundo do trabalho e o do lazer têm tempo para se adaptar a esse futuro tornado prematuramente contemporâneo pela força de um vírus, aqueles que combatem este vírus com tecnologias como Inteligência Artificial (IA), robótica e Big Data precisam acelerar dramaticamente seus procedimentos para enfrentar a velocidade da sua disseminação. Afinal, além de permitir a continuidade do trabalho e das relações sociais, estas tecnologias podem fazer a diferença entre a vida e a morte no front de batalha.
Segundo a revista especializada em saúde STAT, a IA está sendo experimentada pelas redes hospitalares para pré-examinar e instruir possíveis infectados; identificar pacientes de alto risco para que os médicos possam se antecipar proativamente; examinar profissionais de saúde na linha de frente; detectar a covid-19 e diferenciá-la de outras doenças respiratórias; prever quais quadros irão se deteriorar; rastrear leitos e equipamentos; acompanhar os pacientes fora do hospital; detectar a distância altas temperaturas e impedir que pessoas doentes entrem em espaços públicos; e avaliar respostas a tratamentos experimentais.
Além disso, a IA pode acelerar a criação de remédios e vacinas, prever a evolução da epidemia, mensurar o impacto de políticas públicas e aprimorá-las para nos defender contra os surtos futuros que com toda probabilidade virão.
Um rastreamento robusto do vírus é decisivo para frear os primeiros estágios de um surto e será decisivo para as estratégias de transição da quarentena para as atividades normais. O procedimento tradicional de rastrear e notificar os contatos de um infectado é lento, mas pode ser feito instantaneamente através da localização e dos dados dos celulares e de aplicativos para notificação de resultados positivos. Isso ajudou países como Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura.
Em São Paulo, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas e a Telefônica estão implementando o mapeamento dos padrões de deslocamento da população por meio de dados anônimos dos dispositivos móveis. Isso ajudará o governo a elaborar estratégias para conter aglomerações (por exemplo, em terminais de transporte) e programar alertas, evacuações e quarentenas em zonas de risco.
A Câmara dos Deputados aprovou em caráter emergencial o uso da telemedicina enquanto durar a crise. Uma das estratégias capitais é antecipar a triagem dos pacientes antes que cheguem às centrais hospitalares. O atendimento a distância pode diminuir o fluxo de pacientes nos hospitais, reduzindo o risco de contágio, e permitir que médicos em quarentena cliniquem remotamente.
Evidentemente a tecnologia não é uma panaceia. Diagnósticos e prognósticos automatizados ainda são um substituto pobre para um exame presencial detalhado. As ferramentas disponibilizadas aos profissionais de saúde e gestores têm de ser testadas para minimizar os riscos característicos de novos procedimentos. E os rastreamentos em massa impõem o dilema entre a majoração da eficácia e a redução da privacidade. Nas democracias ocidentais os sistemas podem ser implementados com o consentimento dos usuários ou por meio de legislações de exceção para situações de calamidade.
O fato é que em tempos excepcionais os processos regulatórios também precisam avançar em condições excepcionais. Como tudo o mais nesta pandemia, a chave está na agilidade. Assim como os tecnólogos estão acelerando seus processos de criação e produção de novas máquinas, as agências reguladoras, autoridades políticas e sociedade civil precisarão acelerar o processo de deliberação sobre o que é ou não aceitável. Como em todo avanço científico e tecnológico, as soluções virão por sucessivas tentativas e erros. A única atitude inaceitável é não tentar.
Presidentes que não governam – Editorial | O Estado de S. Paulo
O drama humanitário e econômico do coronavírus mostra a falta de líderes à altura da crise
Diante do drama humanitário e econômico causado pelo novo coronavírus, tem sido frequente a constatação de que faltam líderes no cenário mundial à altura da crise. Uma das raras exceções é a Alemanha, em que até políticos da oposição têm reconhecido o privilégio de poder contar, em momento tão delicado, com a liderança da chanceler Angela Merkel.
O caso brasileiro é de outra ordem. Não se trata de lamentar a ausência de lideranças magnânimas e altruístas. Aqui, o problema é básico. Desde 2003 o País tem assistido a uma sucessão de presidentes que, eleitos para governar, não governam, preferindo fazer do mandato uma contínua campanha eleitoral, seja para sua reeleição, seja para a eleição de seu sucessor.
A exceção foi o presidente Michel Temer, que buscou de fato governar, sem submeter o interesse público a questões eleitorais. No entanto, o interregno durou pouco. Tão logo assumiu o cargo, o presidente Jair Bolsonaro mostrou, sem maiores pudores, que reinstalaria a prática petista de não descer do palanque.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi exímio manobrista da cadeira presidencial para fins eleitoreiros. Nos oito anos em que esteve no Palácio do Planalto, Lula orientou toda a ação do governo, em seus mais variados âmbitos, em benefício da empreitada eleitoral do PT.
São abundantes, nos dois mandatos de Lula, os exemplos de captura do Estado para fins partidários. Ainda que contasse com o apoio da maioria do Congresso, Lula não realizou nenhuma reforma estruturante, receoso de que eventual aprovação poderia trazer riscos para sua reeleição ou para a eleição de seu sucessor. Com esse critério eleitoral a guiar o governo, Lula também não fez nenhuma ação que contrariasse, por exemplo, os interesses das corporações do funcionalismo. Os privilégios foram mantidos intactos. Além disso, valeu-se amplamente de nomeações nas estatais, agências reguladoras e cargos comissionados para o aparelhamento do Estado.
Candidata inventada a partir dessa lógica eleitoreira, a presidente Dilma Rousseff, uma vez no cargo, deu continuidade ao estilo petista de não governar. Sem enfrentar os problemas nacionais, ela optou por medidas populistas, em cópia piorada do voluntarismo de seu criador.
Quando começaram a aparecer os efeitos nefastos de sua política econômica, Dilma Rousseff temeu por sua reeleição e, em vez de fazer as devidas correções, fez o diabo para esconder a realidade dos olhos da população. Colocava em prática, assim, sua famosa frase, dita em 2013, de que “nós podemos fazer o diabo quando é a hora da eleição”. Reelegeu-se em 2014, mas pouco depois o País inteiro tomou conhecimento não apenas do tamanho da crise, mas da gravidade de suas pedaladas fiscais, o que lhe rendeu o devido processo de impeachment.
Durante a campanha de 2018, o candidato Jair Bolsonaro prometeu romper com a lógica eleitoreira. Disse até que pretendia “fazer uma excelente reforma política, acabando com o instituto da reeleição, que começa comigo, caso seja eleito”. Tudo isso foi logo esquecido. Desde o início do ano passado, Jair Bolsonaro imita à risca a estratégia de Lula de não governar, estando em contínua campanha eleitoral. Além de aprofundar a divisão do País – há sempre um inimigo a inventar, até mesmo dentro do próprio Ministério –, Bolsonaro esquiva-se de tudo o que possa representar algum risco eleitoral, como é o caso da reforma administrativa.
Prometida várias vezes, até agora a proposta do Executivo não saiu do forno. Além disso, o presidente comporta-se no pior estilo da propaganda eleitoral, falsificando a realidade. “Nosso time está ganhando de goleada”, disse Bolsonaro, em coletiva no mês passado para tratar da pandemia do novo coronavírus. Maior alheamento, impossível.
Como escreveu Rosângela Bittar no Estado, “ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas”. Que o eleitor, nas próximas eleições, não se esqueça dessa irresponsabilidade e indiferença em relação ao País. É preciso eleger quem queira de fato governar.
• Governo discute recuperação econômica pós-pandemia – Editorial | Valor Econômico
Planos de retomada não ficam em pé se não tiverem sustentação em uma sólida estratégia fiscal
Começa a ganhar corpo a tese de que será preciso tomar medidas fiscais para além da etapa emergencial de combate à pandemia para estimular a economia e reconstruir a capacidade produtiva. O desafio será encontrar espaço no orçamento para pagar também essa conta. Sem o adequado financiamento, o país entrará numa espiral de endividamento que abreviará a recuperação econômica.
Logo após o surgimento do novo coronavírus, economistas acreditavam que o Brasil seria afetado apenas por um choque de oferta, com o bloqueio das cadeias produtivas da China. O impacto tenderia a ser temporário e restrito, já que nossa economia é ainda muito fechada.
Com a adoção das políticas de distanciamento social, começou a se configurar um choque mais duradouro. O fechamento de fábricas, lojas e escritórios interrompeu a produção de bens e serviços não essenciais. A queda do rendimento do trabalho, a quarentena e a queda da confiança derrubaram a demanda.
Dada a profundidade da retração esperada do Produto Interno Bruto (PIB), que alguns calculam em 8% neste ano, é bem provável que a crise deixe cicatrizes mais profundas. Economistas começam a estimar o quanto da capacidade produtiva do país - o chamado PIB potencial - será eliminada com a falência de empresas e o desemprego prolongado.
A capacidade de recuperação da economia também deve ficar comprometida. Uma boa parte da resposta emergencial à pandemia envolve empréstimos para famílias e empresas atravessarem o período de perda de renda e receita. Mais endividado, é provável que o setor privado passe por um período de desalavancagem.
Esse quadro de incerteza tem levado os analistas econômicos a reverem seus prognósticos de uma retomada em “V” da economia em 2021. A recuperação tenderá a ser mais lenta e frágil, com riscos de novas recaídas. Muitos enxergam um papel a ser exercido pelo governo para reativar a demanda, passado o primeiro efeito do choque do coronavírus, e para reconstruir a capacidade produtiva.
É nesse contexto que começam a surgir, dentro do governo, os primeiros planos. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, preparou um programa com 70 obras para serem tocadas até 2022, o que exigiria investimento de R$ 30 bilhões e criaria até um milhão de empregos, segundo antecipou o Valor na edição de 7 de abril.
O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Von Doellinger, está elaborando o que chama de um “Plano Marshall”, que será entregue em junho ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Em entrevista ao Valor na última sexta-feira, ele evitou mencionar valores, mas adiantou que são contemplados quatro eixos: crédito para recuperar cadeias produtivas no mercado doméstico; linhas de financiamento para normalizar a capacidade exportadora; investimentos em infraestrutura usando parcerias público privadas (PPP); e o reforço a políticas sociais e de fomento ao emprego.
Os planos do governo coincidem com diagnóstico apresentado por líderes e economistas latino-americanos em carta divulgada durante o encontro do Fundo Monetário Internacional (FMI). A questão é que não há espaço fiscal para essas políticas, num momento em que os governos estão superendividados e as economias sofrem a fuga de capitais estrangeiros. Na carta, os líderes pedem que sejam reforçadas a linhas de assistência do FMI para os países da América Latina e Caribe. Do Brasil, assinaram o documento o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn.
A situação fiscal brasileira é dramática. O déficit primário, que era previsto em 1,5% do PIB, poderá chegar a 8% do PIB. A dívida bruta se aproxima a passos largos de 100% do PIB. A ampliação de gastos para reativar a economia, num quadro já preocupante, tenderá a agravar ainda mais a situação, elevando os prêmios de risco, afastando capitais estrangeiros e minando a confiança de famílias e empresas.
Planos de recuperação não ficam em pé se não tiverem sustentação em uma sólida estratégia fiscal. Torna-se mais urgente repriorizar despesas, com o andamento de reformas que já estão no Congresso e outras que ainda não foram enviadas, como a administrativa. É urgente não perder o foco na consolidação fiscal de médio e longo prazos, com medidas adotadas desde já.
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