- Valor Econômico
Votação sobre o Carf ilustra jogo de interesses
Reducionismos são muito perigosos, principalmente em tempos de crise. Por trás de expressões bonitas como “interesse público”, “bem comum”, “proteção social”, “eficiência e produtividade” podem estar escondidas perigosas armadilhas. Em meio à comoção coletiva e com o noticiário dominado pelo mono assunto da covid-19, é preciso atenção redobrada. Os oportunistas estão à espreita.
Outro risco é acreditar em estereótipos e rotulagens. Frequentemente caímos no conto do mocinho versus bandido, do bem contra o mal. Relações sociais em geral são desiguais, e a maioria dos países busca aprovar legislações para evitar abusos contra o lado mais frágil, como empregados, tomadores de empréstimos e locatários. Quando erramos a mão na tentativa de regular a vida em sociedade, ocorrem distorções com consequências severas - imóveis vazios num país de enorme déficit habitacional, crédito caro e escasso, 40 milhões de trabalhadores informais. Mas isso é assunto para outras colunas.
O pior dos mundos acontece quando grupos de interesses muito bem articulados se valem de simplificações maliciosas e de um falso discurso de boas intenções para impor grandes prejuízos para a sociedade. A história aconteceu nas últimas semanas, e quando percebemos o leite já havia sido derramado.
Em outubro de 2019, muito antes de um simples vírus colocar de joelhos toda a humanidade, o governo Bolsonaro editou a Medida Provisória nº 899, que tinha por objetivo estabelecer as condições para que a União e seus devedores pudessem sentar na mesma mesa e encontrar uma solução consensual para seus litígios. A iniciativa, proposta pelos ministros Paulo Guedes (sob cujas asas está a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) e André Luiz de Almeida Mendonça (titular da Advocacia-Geral da União), visava aumentar a probabilidade de recuperar os créditos da dívida ativa da União.
De acordo com os números apresentados na Exposição de Motivos encaminhada ao Congresso, o governo tem uma carteira de quase R$ 3 trilhões de reais de dívida questionada na Justiça, além de outros R$ 600 milhões em disputa administrativa, no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf (guarde esse nome). Como boa parte desse crédito é de difícil recuperação - pois até que o processo judicial seja encerrado, as empresas já faliram, ou os devedores deram o seu jeito de desviarem o patrimônio -, a proposta era estimular uma solução negociada entre as partes, em que o devedor pague a dívida imediatamente, mesmo que com um desconto. Ao propor a MP, o governo seguia a velha máxima de que “um mau acordo é melhor do que uma boa demanda”. Cabia, porém, regular essa transação, revestindo-a de legalidade e dos devidos controles para evitar casos de corrupção e outros crimes contra a Administração.
Quando se trata de assuntos envolvendo tributação, os interessados ficam de olho. Durante a tramitação, os parlamentares fizeram 220 sugestões para “aprimorar” o texto. Duas delas merecem atenção. A emenda nº 9, de autoria do deputado Heitor Freire (PSL-CE), pretendia acabar com o voto de desempate do representante do Fisco nos processos do Carf que estabelecem o crédito tributário e o seu valor. Já a emenda nº 162, apresentada por seu colega Gilberto Nascimento (PSC-SP), buscava regular o pagamento do Bônus de Eficiência e Produtividade aos auditores e analistas fiscais da Receita Federal.
Nenhuma dessas duas sugestões foi acatada pelo relator da MP, o deputado Marco Bertaiolli (PSD-SP). Mas quando a matéria foi à votação, no dia 18/03, todos os olhos já estavam voltados para o coronavírus. Foi aí que o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) propôs ressucitá-las, e o plenário da Câmara aprovou a sugestão sem qualquer resistência.
Com o Senado já realizando votações virtuais, a questão foi resolvida em uma única seção, no dia 24/03. Após ser alertado pelos senadores Fabiano Contarato (Rede-ES), Carlos Viana (PSD-MG), Chico Rodrigues (DEM-RR) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) que os dois dispositivos incluídos pela Câmara traziam matérias estranhas à MP original, e por determinação constitucional não poderiam ser aprovados, o presidente em exercício da Casa, Antonio Anastasia (PSD-MG), colocou as questões em discussão. O bônus da Receita caiu, mas a mudança no critério de decisão do Carf não.
Bolsonaro teve a oportunidade de vetar o dispositivo do Carf. Dizem até que Sergio Moro se mostrou preocupado com os danos sobre a corrupção e as investigações ainda em curso da Operação Lava-Jato, mas a Lei nº 13.988 foi sancionada integralmente pelo presidente no último dia 14.
Essa história maçante sobre tramitação legislativa ilustra bem como se arruína um país com movimentos sutis. Sob argumentos nobres como a proteção do contribuinte, o princípio do “in dubio pro reu” (na dúvida, a favor do réu) e a necessidade de conter a voracidade do Fisco brasileiro, aumentou-se ainda mais o risco de corrupção. Se antes da mudança a Operação Zelotes já apresentava fortes evidências de beneficiamento indevido de grandes empresas nos julgamentos do Carf, não é difícil imaginar o que acontecerá com o voto de desempate agora contando a favor dos devedores.
Não há dúvidas de que o modelo tributário brasileiro precisa ser completamente revisto. A legislação é caótica, há muita margem para a interpretação do Fisco e o modelo ibérico de decisões administrativas passíveis de questionamento na primeira instância da Justiça traz insegurança e ineficiência. Mudanças sorrateiras feitas na legislação, porém, não têm o propósito de reformá-lo, e sim dar ainda mais poder para quem dispõe de grandes escritórios de advocacia e redes de lobistas para pagar menos impostos.
A história talvez também teria sido diferente se os órgãos de representação dos fiscais da Receita Federal tivessem utilizado sua pressão no Congresso Nacional para defender o interesse da sociedade e não para defender um penduricalho de até 80% nos seus já elevados salários. De boas intenções, o Congresso está cheio. Mas, no inferno, quem reside é a maioria da população brasileira.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
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