Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Por que copiamos o que de pior o eleitorado dos EUA escolheu para governá-lo?
Em dias passados, a Convenção Nacional do Partido Democrata, dos EUA, iluminou o fosso que nossas eleições de 2018 abriram entre o verdadeiro Brasil e o Brasil da cópia. Porque, naquelas eleições, sem sermos informados e advertidos pela Justiça Eleitoral e pelos partidos, nossa falta de imaginação elegeu a mera cópia do presidente americano, Donald Trump. Personagem do que de pior de política tem a América. Seu governo é um dos mais distantes das grandes tradições sociais e democráticas daquele país.
Nessa convenção, os candidatos do Partido Democrata e os adeptos de seus valores e propósitos dão perturbadora visibilidade às escolhas que o eleitorado brasileiro fez aqui, notórias no ano e meio de incertezas e desgoverno.
Se a falta de imaginação, de formação política, de competência, de discernimento dos eleitos daqui não lhes deixava senão a alternativa de copiar, por que não copiaram gente como a que se apresentou na tribuna da convenção de lá na semana que passou?
Gente como Barack Obama, Michelle Obama, Kamala Harris e Biden, além dos muitos coadjuvantes que se manifestaram com discernimento a representar a diversidade rica da opinião democrática americana?
Se era para copiar, por que não copiamos os princípios enunciados nos discursos responsáveis desses oradores que têm um perfil consolidado de compromisso com os valores das grandes tradições humanistas da sociedade americana? Por que, enfim, tivemos que copiar o que de pior o eleitorado americano escolheu para governá-lo?
Muitos temas abordados por jovens e adolescentes nos discursos da ocasião nos envergonham em face do primarismo oportunista dos membros do governo brasileiro, exposto na deplorável reunião ministerial de 22 de abril.
Os adolescentes da convenção de lá poderiam dar lições a ministros daqui, cujas insuficiências evidenciaram um clamoroso despreparo para compreender a gravidade de nossos problemas e para governar.
Como a miséria mental da proposta de deixar a boiada passar enquanto a mídia e o povo estão preocupados com a pandemia.
O sólido e competente discurso de Michelle Obama poderia servir de programa político para qualquer país carente de rumos, de civilização e de democracia autêntica, como o nosso.
Há um lado da América, que foi protagonista na convenção e em seu discurso falou, que é a América da democracia comunitária, a América que se recusa a submergir na mentalidade coisificante da desumanização que decorre do primado da mercadoria e do dinheiro na identidade e na conduta de suas vítimas.
Não feliz com tamanho desprezo pela inteligência do povo brasileiro, por suas conquistas notáveis em menos tempo do que o fizeram outras sociedades porque somos esforçados, o eleito daqui não se peja de bajular o eleito de lá. A bajulação servil de quem concebe o próprio país como reles província ideológica de outro país.
O que ficou claro no gravíssimo ato de carneirismo político que foi a entrega à embaixada da América de Trump, por parte do próprio filho do governante brasileiro, de um dossiê sobre mais de 500 cidadãos brasileiros antifascistas, documento irregular e indevido do governo daqui. Brasileiros antifascistas, coisa que milhões de brasileiros são, criminalizados porque optaram pelo que a decência política recomenda e a pátria carece.
Essa gente do governo atual está tão desligada das tradições da pátria que nem sabe que as Forças Armadas do Brasil participaram, em 1944, da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como força antifascista. Brasileiros morreram nos campos de batalha da Itália para combater o fascismo italiano e o nazismo alemão, que há quem queira reproduzir no Brasil.
Em uma campina de Pistóia, a brisa matutina ainda sopra sobre o silêncio do Cemitério Brasileiro, de onde os restos mortais dos que morreram por essa causa democrática foram exumados e removidos para o Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial. Isso foi apagado da memória de governantes e cúmplices? Quem combate o antifascismo, fascista é. Em 1944, era traição à pátria.
Durante a Convenção Democrata Americana, foi preso por corrupção o sujeito que está por trás do neofascismo que se difundiu no mundo nos últimos anos. Um dos patronos da ideologia governamental do Brasil de hoje. Acusado de desviar dinheiro dos milhões de dólares arrecadados para construir o iníquo muro de separação entre os EUA e o México que impedisse a entrada de trabalhadores mexicanos naquele país. Pagou US$ 5 milhões de fiança e vai aguardar o julgamento em liberdade.
A mídia brasileira identificou-o como influente na concepção de política de um filho do presidente brasileiro e de outros coadjuvantes do governo daqui.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Fronteira - A degradação do Outro nos Confins do Humano" (Contexto).
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