Sem teto ou sem balizas fiscais consistentes, a travessia do governo até as eleições não seria nada fácil
O “big bang” pretendido pelo governo não terminou com uma explosão, nem com um murmúrio, mas com um resmungo irritado do presidente Jair Bolsonaro dizendo que o Renda Brasil estava suspenso. São insondáveis os desígnios do presidente, menos o seu plano de reeleger-se. Ele reclamou do valor estimado pelo ministro Paulo Guedes, entre R$ 230 e R$ 270 - achou pouco. Guedes fez cálculos e, para chegar nos R$ 300, teria de acabar com certos programas, como o abono salarial. Bolsonaro disse que não iria tirar dos pobres para dar aos “paupérrimos”. Os mercados viram na reação de Bolsonaro um sinal de que o teto de gastos vai desabar logo. Bolsas caíram, o dólar subiu.
Governos organizados discutem questões vitais como essa em privado e a apresentam em público sem arestas. Mas o governo Bolsonaro não se entende nem a portas fechadas, como demonstrou o show de horrores da reunião ministerial de 22 de abril, feita para debater um plano de investimentos para o país. O presidente faz o que quer, quando quer, mas reuniões de trabalho com a equipe econômica poderiam produzir mais luz e menos ruídos.
Há questões de forma e de fundo na recusa de Bolsonaro. A primeira é política. Guedes é hoje um pilar do governo, com sua política liberal que é apoiada por boa parte dos empresários e investidores. Até para simular unidade de propósitos, alguma reverência e polidez no trato mútuo seria recomendável. Mas, para Bolsonaro, não existem eminências em seu governo. O presidente o desautorizou em público, mais uma vez, relembrando a série de situações constrangedoras a que expôs o ex-ministro da Justiça, Sergio Moro.
A questão de fundo é mais econômica e difícil de resolver. Para manter o teto de gastos, não há muitas maneiras de elevar as despesas sem remanejar programas, como abono salarial, por exemplo, para ampliar outro, como o Renda Brasil, que sucederá o Bolsa Família. A opção, não excludente, é o governo se empenhar em um mutirão pelas reformas que já foram apresentadas, convencendo o Congresso a aprovar logo gatilhos que permitam sustentar a única âncora fiscal existente, e impedindo aumentos reais, promoções e penduricalhos na folha de pagamentos, a segunda maior despesa federal.
A reforma administrativa, que só pode partir do Executivo, abriria um caminho para melhorar a qualidade e eficácia do Estado, mas Bolsonaro não tem interesse no assunto e, assim como não quer agora desagradar aos “pobres”, não quis problemas com o funcionalismo. Quanto às demais reformas, não se conhece qualquer opinião firme sobre elas. Após negar a CPMF e demitir o secretário da Receita que a defendia, cedeu e deu seu aval, desde que se abata algum outro imposto.
A prorrogação do auxílio emergencial não é polêmica, embora seu valor o seja. É possível estender o socorro até o fim do ano, dentro do crédito sem limite que o decreto de calamidade pública permite. Ao opinar sobre o assunto, o presidente Jair Bolsonaro se preocupou com os gastos públicos e defendeu um valor menor.
As duas atitudes sobre assuntos correlatos - a Renda Brasil sucederá também, com menor abrangência e menos dinheiro o auxílio emergencial - mostram os dilemas de Bolsonaro. Ou se acata o teto e a renda mínima será o que Guedes propôs, ou a renda será maior, sem remanejamento de programas, como insinua Bolsonaro, e o teto desaba. Nesse vácuo surgem ideias perigosas.
Na defensiva, Guedes procura um ‘big bang in progress’, com aumentos à medida que os recursos aparecerem - se aparecerem. O que apareceu foram atalhos espertos. Como o Renda Brasil pode atrasar, há propostas de estender o auxílio emergencial para 2021. O nome não importa tanto, e sim a origem dos recursos. Não haverá mais créditos fartos no ano que vem. Eles se tornaram disponíveis diante da imprevisibilidade e destruição provocadas pela pandemia. Procuram-se desvios para gastos com dinheiro inexistente.
Há sobra de recursos nos Estados e em alguns ministérios decorrentes dos créditos por conta da pandemia. Ministros já consultaram o TCU se poderiam usá-los em obras no próximo exercício e a resposta foi negativa. Nos Estados, a vontade de aproveitá-los não é pequena. No Planalto, o presidente pensa na reeleição, na qual um inconcebível papel de protetor dos pobres poderia lhe render votos. A renda mínima pode ser a única bandeira popular de seu governo. Sem teto ou sem balizas fiscais consistentes, porém, a travessia do governo até as eleições não seria nada fácil.
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