Em lugar algum
da Constituição está escrito que uma só fé define a nação
Em religiões de matriz africana, Tempo é divindade. Pois só intervenção
divina, não coincidência, explica que mais de um século de sequestro de peças
sagradas de religiões de matriz africana tenha chegado ao fim na véspera do
discurso em que o presidente da República exortaria o mundo a combater a
cristofobia e apresentaria o Brasil à ONU como país cristão e conservador. Foi
na segunda, 21 de setembro, que o caminhão com 72 caixas retiradas do antigo
prédio do Dops — órgão de repressão tanto do Estado Novo quanto da ditadura
militar — estacionou no Museu da República, novo endereço da Coleção Magia
Negra, já rebatizada de Acervo Sagrado Afro-Brasileiro. O sentido pejorativo da
denominação por autoridades policiais é evidência da perseguição histórica
sofrida por terreiros de umbanda e candomblé. A fobia é ao axé.
Jair Bolsonaro acenou a grupos religiosos que formam sua base de apoio
político-eleitoral e deu as costas à Carta que jurou respeitar. No parágrafo VI
do Artigo 5º, a Constituição Federal estabelece que “é inviolável a liberdade
de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias”. O Brasil fez uma escolha conservadora nas urnas em 2018. É um
país com muitos cristãos — católicos, protestantes e neopentecostais são
maioria —, mas em lugar algum está escrito que uma só fé define a nação.
Há garantia legal a todos os credos; a laicidade do Estado está
assegurada no Artigo 19, sublinha o procurador da República Jaime Mitropoulos:
“O Estado não tem religião e deve respeito a todas elas, de forma igualitária.
A Constituição proíbe que o Estado privilegie, endosse ou encampe, ainda que de
modo indireto ou velado, qualquer crença ou segmento religioso. A laicidade
serve para que o Estado brasileiro não seja capturado ou siga dogmas ou
doutrinas religiosas de uma ou outra vertente”.
Do presidente, suposto líder de todos os brasileiros, é esperada postura
republicana de não apenas repudiar, mas combater toda e qualquer perseguição
religiosa. Ao manifestar em palco global empatia seletiva com o cristianismo,
Bolsonaro desconsidera informações oficiais de seu próprio governo. Desde 2011,
estatísticas do serviço Disque 100, que recebe denúncias de violação aos
direitos humanos, atestam que religiões de matriz africana são os principais
alvos de ataques e agressões no país. Em 2019, contabilizou 410 queixas
relacionadas à intolerância religiosa. Das 302 em que os cultos foram
informados, 179 (seis em dez) referiam-se a religiões afro-brasileiras. Contra
a umbanda houve 91 ocorrências; candomblé, 59; 26 indicaram genericamente
matriz africana.
O ambiente de intolerância é grave a ponto de os ataques serem tratados
como racismo religioso, herança da conversão imposta aos africanos escravizados
pelo colonizador português e a Igreja Católica. A perseguição atravessou o
Império e alcançou a República — prova disso são os 523 objetos sagrados, ora
resgatados, que foram subtraídos pelo Estado de terreiros entre 1890 e 1941. No
século passado, a violência oficial deu lugar à perseguição orientada por
líderes de denominações neopentecostais. Recentemente, grupos civis armados —
sobretudo, quadrilhas do tráfico de drogas da Região Metropolitana do Rio —
engrossaram as fileiras. Eles ordenam destruição de terreiros e símbolos
sagrados, proíbem uso de roupas brancas e fios de contas, expulsam religiosos
dos territórios que controlam.
O governo fluminense, em 2018, criou delegacia voltada ao crime; o Ministério Público Federal produziu documento robusto sobre a laicidade do Estado e a necessidade de combate à intolerância religiosidade. A sociedade civil faz sua parte ao perseguir a liberdade prevista na Carta. Foi assim que descendentes dos terreiros subtraídos conseguiram libertar a herança sagrada. Três caixas com o acervo foram abertas na chegada ao Museu da República. Da primeira, saiu o rum, o maior e mais grave dos três atabaques ritualísticos. O tambor ressoou a liberdade.
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