As eleições de 2018 deram respaldo a uma concepção de poder fundada em técnicas de transgressão de brechas que existem na ordem política e no pacto implícito na Constituição de 1988
Não passa um único dia sem que atos do governo e do governante exponham indícios significativos das deformações constitutivas do Estado brasileiro. Até religiões têm tido aí uma função.
É
esse quadro de referência que dá sentido à decisão do presidente da República
de vetar parcialmente o perdão das dívidas tributárias das igrejas, projeto
apresentado ao Legislativo por deputado que é filho de conhecido pastor de
igreja neopentecostal.
O
Estado entende que as igrejas têm lucro. O que sugere, para quem crê, que, se
tem lucro, não são igrejas e devem ser tributadas. Se são igrejas, não podem
ter lucro, e o tributo não cabe. O presidente não vetou, porém, o descabido
perdão das dívidas previdenciárias das igrejas. Dívida para com a previdência
social é sagrada, pois o credor não é o governo, é quem trabalhou a vida
inteira, contribuiu e dela depende ou vai depender.
Neste país, se o assunto envolve religião, é, supostamente, assunto de Deus.
Nesse caso, vale tudo. A verdade é que temos uma questão religiosa, que se
atualiza desde que houve o caso do “Cristo no júri”, em 1891.
Um
tema suscitado pelo dr. Miguel Vieira Ferreira (1837-1895), engenheiro militar,
doutor em matemática e física, republicano histórico, abolicionista e fundador
e pastor da Igreja Evangélica Brasileira, a primeira dissidência local da
Igreja Presbiteriana. Recusou-se a participar de uma sessão do júri se um
crucifixo que ali havia não fosse removido.
A
imagem era violação de sua liberdade de consciência. A questão se estende sem
solução até hoje. No recinto do Supremo Tribunal Federal, um crucifixo desafia
a premissa da liberdade religiosa dos cidadãos. Um dos ministros já o
reconheceu informalmente.
Quando
a República foi proclamada, um decreto proposto pelo ministro da Justiça
separou o Estado da Igreja. A República não teria religião oficial. Isso não
queria nem quer dizer que a prática religiosa é proibida. Ao contrário, a
separação entre Estado e Igreja no Brasil teve por finalidade assegurar a
democrática liberdade religiosa, a liberdade de consciência e o direito
individual de cada qual ter ou não ter uma religião.
O
Estado republicano proclamou-se, assim, um Estado em favor da tolerância
religiosa decorrente da liberdade de crença. A religião passava a ser
reconhecida como um bem dos direitos individuais. A sociedade é plural, e o
Estado não pode ter nem impor religião.
O
tempo passou. Os acatólicos, como os chamavam, se multiplicaram. Na categoria
“evangélicos”, surgiram os neopentecostais, que dos protestantes se diferenciam
e muito. Diferentes facções religiosas passaram a identificar-se com a chamada
teologia da prosperidade.
É
oposição à teologia da libertação, católica e, também, protestante, da opção
preferencial pelos pobres. Especialmente com os neopentecostais, houve reforço
da tese originalmente calvinista de que o dinheiro e a acumulação de capital
são os indícios fortes da predestinação do crente à salvação.
O que ganhou sentido indevido, aliás, nas brechas da alienação popular e da
estrutura do poder político, as de deixar passar a boiada, isto é, do que não
parece ter abrigo na lei e na Constituição. Mas é da conveniência de alguém, do
governo, ainda que não necessariamente do Estado, que deveria ser instrumento
da vontade democrática do povo.
Tudo
aqui se torna dependente da disposição do governante para transgredir e da
coragem de nesse sentido ousar. Esse veto parcial pode ser compreendido nessa
perspectiva.
As
eleições de 2018 não elegeram simplesmente um governo. Deram respaldo a uma
concepção de poder fundada em técnicas de transgressão do muito de fragilidade
e de brechas que há na ordem política e no pacto implícito na Constituição de
1988. O sistema político brasileiro, historicamente, não é baseado nas regras
pactadas, mas nas exceções que propositalmente comportam.
A
“teoria da boiada” é a teoria das exceções da Constituição e das leis. Somos
gente esperta, como o autor da tese. Base extralegal da esperteza de alguns que
nos impede de chegar onde podemos.
O
Brasil está sendo transformado num país de clandestinidades que atuam no
sentido de demolir e apagar da lei e da prática do Estado conquistas
democráticas que os governantes não foram autorizados a suprimir. Trata-se de
uma usurpação antidemocrática de direitos, especialmente de direitos sociais.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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