Há
justificada perplexidade em relação à governança
eleitoral na maior democracia do mundo.
A
criação de barreiras à participação de determinados segmentos do eleitorado é
inédita nas democracias. As formas que essa exclusão potencial assumem são
variadas: exigências peculiares quanto ao voto pelo correio, problemas de
acessibilidade às cabines de votação ou quanto à sua localização, além de
exigências quanto à identificação do eleitor.
A
situação é tão crítica que os estados com um histórico de práticas excludentes
têm que submeter as alterações de procedimentos ao Departamento de Justiça. No
passado, tais práticas consistiam de exigências como quitação de taxas
individuais ou testes severos de alfabetização, o que acabava excluindo a
população negra e/ou pobre.
Entre
nós a exclusão dos setores pobres é muito mais complexa. A Lei Saraiva (1881)
proibiu o voto dos analfabetos; a legislação posterior referendou-a, mas a
implementação era pífia. As coisas só mudam na prática com a adoção, em 1955,
da cédula oficial em substituição as fornecidas pelos próprios partidos, e que
permitia a
violação sutil do sigilo do voto.
A
nova cédula exigia que o eleitor escrevesse o nome/número dos candidatos para
os vários cargos, o que acarretou uma enorme expansão dos votos inválidos. A
cédula distribuída pelos partidos já continha esta informação, o que permitia
que os analfabetos votassem. Prevalecia assim um equilíbrio perverso
que permitia a sobrevivência política de elites rurais com controle histórico
sobre um eleitorado cativo.
Os
bastidores da reforma de 1955 estão disponíveis na forma de registro diário e
detalhado das negociações ocorridas entre 11 e 26 de agosto daquele ano,
transcritas pelo paladino da reforma, Afonso
Arinos, em suas memórias. Tratava-se de uma das medidas da UDN contra o
abuso de poder do getulismo, e contou com apoio ativo da Igreja Católica e do
TSE, e pressão dos militares. O ator chave, o PSD (majoritário no Congresso),
só retirou seu veto após a garantia de que a cédula oficial também pudesse ser
distribuída pelos partidos na eleição de 1955.
Esse
estado de coisas foi simbolicamente alterado com a extensão do voto aos
analfabetos pela emenda constitucional 25, de 1985; a mudança radical ocorreu
em 2000, com a adoção da urna eletrônica. A percentagem de votos em branco e
nulos que era uma das maiores do mundo —a média para o período 1980-2000 chegou
a inimagináveis 37%, enquanto na Costa Rica, Uruguai, Chile, Argentina girava
em torno de 5%— caiu brutalmente.
Desde
2000 o Brasil é modelo de governança com altas taxas de comparecimento às urnas
e baixas taxas de votos nulos.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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