Processo
sobre imposto sobre doações é exemplo de concentração de renda
No
início dos anos 2000, uma notinha da coluna Radar, na revista Veja, contou que
um ascendente empresário de São Paulo, mostrando-se interessado em comprar um
jatinho Gulf Stream de última geração, perguntou a Abílio Diniz sobre os custos
de manutenção da aeronave. O então dono do Grupo Pão de Açúcar teria respondido
nos seguintes termos: “Se você se preocupa com esse tipo de questão, certamente
ainda não está preparado para ter um avião como esse”.
De
acordo com os registros da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), existem 46
jatinhos Gulf Stream voando pelos céus brasileiros. Quatro deles são modelos da
sexta geração, cujo preço se situa acima de US$ 60 milhões, e foram comprados
ou arrendados pelas famílias Diniz, Oliveira Andrade (Caoa) e Sanchez
(farmacêutica EMS), além de uma empresa de táxi aéreo.
O
que pouca gente sabe é que a propriedade de jatinhos de luxo não é tributada no
Brasil graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2007. Valendo-se de
um malabarismo semântico e de uma frágil interpretação da evolução histórica da
legislação, o ministro Gilmar Mendes convenceu a maioria de seus pares de que a
determinação da Constituição de instituir impostos sobre a “propriedade de
veículos automotores” (art. 155, III) só se aplica a veículos terrestres, não
devendo ser estendida a aeronaves e embarcações (RE 379.572-4). A partir daí,
ao contrário dos pobres mortais que pagam IPVA sobre seus carrinhos, os jatos,
helicópteros, iates e lanchas dos multimilionários estão isentos.
Na
última sexta (23/10) a instância máxima de nosso Judiciário iniciou um
julgamento que pode ratificar uma nova benesse para os 0,001% mais ricos.
Amparando-se numa ambivalência de outro dispositivo constitucional (desta vez o
art. 155, § 1º, inciso III, alínea a), algumas das famílias mais ricas do
Brasil recorreram ao STF para não terem de pagar tributos sobre recursos
transferidos ou gerados no exterior por seus patriarcas e que agora retornam ao
país na forma de doações a seus herdeiros. Alegando que o Congresso Nacional
não aprovou uma lei complementar que deveria tratar da cobrança do Imposto
sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) quando o doador tiver
residência no exterior, nossos bilionários pretendem ratificar uma lucrativa
estratégia de planejamento sucessório.
As
alíquotas do imposto sobre heranças e doações no Brasil situam-se na faixa de
4% a 8%, a depender do Estado. Trata-se de um patamar bem inferior ao de países
como Japão, Coreia do Sul, França, Inglaterra e Estados Unidos, onde superam
40%. No entanto, são tantas as isenções e regras especiais criadas justamente
para beneficiar os mais abastados, que a Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem defendido sua completa reformulação,
mudando sua incidência do doador para o recebedor das transferências de renda
intrafamiliares. De acordo com a proposta, o valor recebido como herança ou
doação deveria ser considerado renda, e taxado na fonte com alíquotas bem mais
altas.
Por
aqui, em vez de ampliarmos o debate por uma maior igualdade e progressividade
na tributação, as discussões sobre a reforma são interditadas pela gritaria de
setores que se dizem prejudicados com as PECs que criam um Imposto sobre Valor
Agregado de alíquota única e simplificada, aplicado de forma justa e
igualitária para todos os bens e serviços. E enquanto a reforma tributária
empaca no Congresso Nacional, o topo do topo da pirâmide de distribuição de
renda recorre ao Judiciário para sacramentar seu “planejamento tributário” que
envolve remessas de valores para paraísos fiscais e sua posterior repatriação sem
imposto, com o consentimento do STF.
Quando
estudamos as causas do subdesenvolvimento das nações, as elites econômicas e
políticas são frequentemente apontadas como responsáveis pela criação de
mecanismos que levam à concentração de renda e de poder nas mãos de poucos, em
detrimento de milhões. Mas na maioria das vezes as críticas ocorrem em bases
genéricas, sem apontar quem são essas elites e tampouco quais engrenagens elas
utilizam.
No
caso específico do julgamento do ITCMD sobre as heranças, temos uma rara
oportunidade de dar nome aos bois. No parágrafo anterior, onde está escrito
“elite econômica”, segundo levantamento feito pelas repórteres do Valor Joice Bacelo,
Beatriz Olivon e Adriana Cotias, estamos tratando dos herdeiros das famílias
Safra, Depieri (laboratórios Aché), Steinbruch (CSN), Bellini (Marcopolo) e os
já citados Diniz, entre outros.
Já
no polo da “elite política” estão os onze ministros do Supremo Tribunal
Federal, que pode ratificar mais esse episódio de concentração de renda (RE nº
851108). Aliás, o relator Dias Toffoli já votou em parte favorável à tese dos
mais ricos - o processo foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre
de Moraes.
As
estimativas indicam que, só no Estado de São Paulo, esse presente para os
bilionários pode passar de R$ 60 bilhões. Essa é a medida de mais um episódio
explícito de benefícios concentrados para poucos e custos difundidos por toda a
sociedade - afinal, todos nós acabaremos pagando o pato por essa perda fiscal,
seja por meio do aumento de outros tributos, com juros mais altos ou uma maior
inflação.
É
bem verdade que nossa Constituição garante a qualquer pessoa recorrer ao
Judiciário quando entender que seus direitos estão sendo lesados. Mas quando
empresários bilionários se valem da Justiça para pagar menos impostos, eles
perdem a legitimidade de reclamar do tamanho da carga tributária no Brasil e de
suas distorções, pois eles são ampliados muitas vezes por privilégios criados
em seu benefício.
Também
não dá mais para admitir que a cúpula do Judiciário se valha de interpretações
literais das normas para agravar um sistema de concentração de renda que se
perpetua por décadas.
O
caso da isenção da cobrança do ITCMD sobre a repatriação de recursos do
exterior é mais um exemplo do mecanismo de concentração de renda brasileiro
funcionando em toda a sua extensão.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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